O meu pai tem oitenta anos e Alzheimer. A minha mãe trata-o desde a manifestação da doença. Sim, porque ela não se manifesta logo em todo o seu poder. Começa por ser embrionária e provocar algumas confusões ligeiras ou alguns esquecimentos, para ir piorando com o tempo. A última imagem que guardo, antes da terrível enfermidade se manifestar em todo o seu poder, coloca-o empoleirado em cima de uma ameixoeira com um serrote a cortar os rebeldes ramos. Passado um ou dois anos, aquela moléstia atacava a sua cabeça e o seu corpo de forma irreversível. Para aliviar a carga que a doença representa para minha mãe, também atingida pela terrível doença, embora numa fase mais embrionária, trago o meu pai para casa. Em minha casa, o seu comportamento esbate os contornos mais violentos, para assumir outros mais suaves e ternos. Conversa dentro da sua linguagem que demonstra a confusão mental que vai piorando com o cair da tarde. Repete-se. Reinventa-se. Vai estranhando os familiares que o rodeiam o que impressiona os meus filhos, sobretudo a minha filha do meio que estranha e receia a doença. Eu aceito-a. Há já muito que me rendi à doença, talvez porque tenha percebido que é a única maneira de a vencer. Brinco com ele, tentando construir uma atmosfera agradável, alegre e descontraída à sua volta. Desde que esteja acompanhado, está bem, sente-se seguro. Até se remete para curtos silêncios vagueando talvez por águas desconhecidas aos demais. Num dos momentos silenciosos que seguiam à conversa tresloucada, dei por ele a cruzar fortemente as mãos em concha, mantendo os polegares em riste, dos quais aproximava a boca para soprar com força. Não liguei, dado o frio da estação e sabendo que, tal como eu, tem sempre as mãos frias, era um gesto habitual. Um som rouco e suave saltou por cima da mesa e inundou a cozinha. Parámos maravilhados e olhámos à nossa volta. De onde teria partido aquele som longo e fiel imitador de ave? Que ave era? Olhámos para ele. Não fizera nada! Nas suas palavras não sabia o que tinha feito. Voltámos às nossas ocupações. De novo aquele som perfeito atravessou a cozinha sobrepondo-se ao som ritmado de um filme musical gritado pelo aparelho televisivo. Parei para o encarar. As mãos permaneciam petrificadas enquanto aproximava de novo os lábios. A mesma imitação fiel da ave. Como sempre tentara assobiar com a ajuda das mãos e nunca conseguira, a não ser uma ou duas tentativas vitoriosas, fiquei maravilhada. Perguntei imediatamente (não fosse ele esquecer) que ave era aquela que imitava. Respondeu que era a coruja. Nunca na minha vida o ouvira reproduzir aquele som fantástico! Nem mesmo na brincadeira com o irmão mais velho ou quando relembravam, há uns bons anos atrás, as partidas realizadas
Projecto Alexandra Solnado
links humanitários
Pela Libertação do Povo Sarauí
Músicos
artesanato
OS MEUS BLOGS
follow the leaves that fall from the trees...
Blogs
O blog da Inês
Poetas