Há alguns anos atrás, costumava recostar-me na cabeceira da cama para ler alguns contos à minha filha mais velha – a Maria. Eram variados e ilustrados. Acontecia, muitas vezes, repetir os da sua predilecção, por exigência dela. Eu lia as histórias e ela acompanhava atentamente a narrativa pelas ilustrações. Uma noite dessas, ela interrompeu a leitura para me dizer que não estava a contar tudo! Olhei-a, incrédula! Não sabia ler ainda! Andava no infantário! De facto, algumas vezes, o cansaço levara-me a resumir as narrativas à sua linha condutora principal, contando o essencial para que a história tivesse lógica. Nunca reclamara! A certa altura, sentindo-me mal com a batota realizada, chegara mesmo a explicar-lhe o motivo que me levara a resumir as mesmas.
Ora, nessa noite, quando calmamente lhe lia uma das narrativas que ela seguia fielmente a mesma através das imagens, como sempre acontecia. Ainda não sabia ler. A certa altura, disse-me tristemente:
- Oh, mãe, não estás a ler tudo!
- Por que dizes isso? – observei admirada.
- Olha aqui! – observou apontando com o indicador alguns aspectos da ilustração – Tu não contaste isto, nem isto…
Fitei os desenhos, com curiosidade. Tinha razão. O ilustrador tinha contemplado os desenhos com pormenores que não constavam do texto. Expliquei-lhe isso mesmo. Não pareceu muito convencida. Continuámos a nossa aventura pelas páginas da história quando, a certa altura, ela se mexeu visivelmente incomodada. Eu estava a saltar linhas! Como?! Eu, a saltar linhas? Como assim?! Uma página ilustrada com aspectos que não constassem do texto, ainda ia lá, mas tantas…??? Amuou. Eu, perplexa, não sabia como descalçar a bota! Voltei a explicar-lhe que os pormenores da ilustração não estavam do texto da história. Parecia não querer saber! Por fim, como não resultasse pedi-lhe para me apontar os aspectos que eu, supostamente, tinha saltado. E ela não se fez rogada.
- Olha, não contaste este… não disseste que fez isto…
Eu olhava para o omisso texto sem saber se me devia zangar com o narrador se com o ilustrador! Quando, depois de muita luta, ela lá compreendeu e sossegou, tive uma ideia: eu contava a história e ela acrescentava os pormenores inseridos nas ilustrações. Assim foi. Até que, alguns anos mais tarde, se cansou ficando-se pela narrativa.
Algum tempo mais tarde, num teste de poesia, apresentei um pequeno poema ilustrado. Qual não foi a minha surpresa quando, grande parte das questões estavam mal respondidas. Ao olhar para a ilustração, percebi o erro! Tentei, contudo, indagar junto deles a razão do seu insucesso. Tinha sido a ilustração! Em vez de ler, muitos tinham seguido a ilustração! Resolutamente, retirei estas dos testes! Nunca mais! Daí em diante, deixaria tudo à imaginação/interpretação dos alunos. Mais recentemente, quando lia, numa “Hora do Conto”, “O Bojador” de Sophia de Mello Breyner Andresen, um colega, acompanhou com imagens retiradas da net, a minha representação. Nada podia surtir pior efeito nos alunos! Num momento que se queria imaginativo, a atenção passou para as imagens! Estava engraçada, a ideia, mas eles dispersaram-se completamente! Atiraram para segundo plano a audição da pequena peça para se focarem unicamente nas imagens. Nas outras turmas, porém, foi um sucesso. Imagens? Talvez na preparação para a leitura da obra ou para uma possível pós-leitura, mas nunca durante a mesma. Lógico que esta ideia não é regra, só experiência!
Pois é… parece ter sido retirado de um dos quadros de Salvador Dali. Não sei porque me lembrei dele ou da sua obra, que eu tanto admiro, mas agora que recordo aquela cena, acho que o genial pintor lhe daria as cores e os contornos certas para retratar, fielmente, aquele momento.
Contei-o, na privacidade das quatro paredes. Jamais o tinha feito publicamente. Não sei porquê. Talvez por considerar a situação demasiado insólita para ser compreendida ou aceite por quem quer que seja. Mas aconteceu. Numa tarde, procurei alguém que desse uma olhadela aos meus textos, que iriam ser publicados dali a pouco tempo. A minha insegurança fez-me seguir o conselho de um conhecido. Procurei um senhor que se prestou a reler os meus textos. Sim, havia ali muita matéria que indicava que um dia iria ser uma escritora. Entre os grandes entusiasmos dele, ele deixou sair uma frase, que me deixou intrigada. Pegou num dos meus contos, e, sujeitando as folhas impressas ao peito, disse-me que ele iria daquele seria um projecto a dois. Eu fiquei de pé atrás. Não me agradou a ideia. Ele percebeu. A sua atitude modificou-se lentamente, à medida que percebia que aquele projecto a dois, nunca iria ter lugar. Fez questão, ainda assim, e depois de algumas hesitações, de apresentar o meu livro. Sugeri que poderia levar alguns do dele, para as pessoas darem uma olhadela, pois iria falar do trabalho dele, quando o apresentasse ao público presente na sala. Ele falou logo
Troco correspondência regular com amigos brasileiros, leio autores brasileiros, tive alunos e colegas brasileiros e nunca senti a necessidade de fazer fosse o que fosse em relação à língua que partilhamos, nem mesmo no que respeita à ortografia. Esta nunca foi impedimento para a compreensão do conteúdo da mensagem, pelo que nunca tive necessidade de impor nada a ninguém ou vice-versa. De lá, também nunca me apercebi de nenhuma dificuldade na compreensão dos meus textos, e devo já esclarecer que falamos através do msn, que está muito em voga agora. O que dificulta, por vezes, a compreensão dos textos é algum vocabulário brasileiro, com o qual nós estamos menos familiarizados, mas até isso é enriquecedor.
Um dia, uma aluna nova, de nacionalidade brasileira, veio ter comigo muito preocupada com a ortografia, pois sabia que havia disparidade entre o português do Brasil e o de Portugal. Punha-se a questão do que lhe haveria de exigir. Acordámos que a minha aluna escrevia em português com a ortografia brasileira (que aprendera durante os sete anos prévios) e eu respeitava, desde que estivesse correcta. Ajudava-a em muitos aspectos, mas nunca toquei na ortografia ou lhe disse que não era assim que se escrevia, pois seria eu que estaria errada. Jamais procurei impor a ortografia portuguesa à moça, respeitando sempre a forma e o trabalho de colegas brasileiros que, anos antes, se esmeraram a ensiná-la a escrever correctamente, isto é, de acordo com as normas ortográficas brasileiras. Foi muito enriquecedor, mesmo nestas idades, tanto para ela como para os colegas, saberem que a língua pode ter disparidades na sua evolução, só temos que as aceitar, como algo adquirido e respeitá-las. Muitas vezes, ao escrever no quadro, a aluna intervinha dizendo “Que engraçado, no Brasil, nós escrevemos… Eu já me tinha perguntado como seria escrita essa palavra, aqui, em Portugal”. Balanço do convívio das duas línguas? Muito positivo e enriquecedor, para ambas as culturas.
Um ano, tive uma colega brasileira, também ela professora da disciplina de Língua Portuguesa, e ela contou-me da dificuldade que encontrara em se afirmar aqui em Portugal, por ser brasileira e por ser professora da língua. Chegara mesmo a desenhar-se aquilo que poderia se ter tornado numa verdadeira perseguição, por parte de alguns colegas. Só por causa da língua… Que engraçado, onde alguns vêem riqueza, outros vêem ameaças. Os alunos aprenderam as diferenças ortográficas facilmente; ora, porque é que nós, adultos, complicamos sempre tudo?
Sempre fui apologista da liberdade, mesmo a da língua, reservando-lhe o direito de seguir o seu caminho sem confusões.
Fátima Nascimento
Projecto Alexandra Solnado
links humanitários
Pela Libertação do Povo Sarauí
Músicos
artesanato
OS MEUS BLOGS
follow the leaves that fall from the trees...
Blogs
O blog da Inês
Poetas