Sempre tive uma leitura expressiva. Usava-a na sala de aula até ao momento em que percebi a estranheza dos alunos. Inexplicavelmente, deixei de fazê-lo. Não sei porquê! Talvez por não ter interpretado bem a estranheza dos alunos. Tal como terminou assim recomeçou. Talvez por mérito dos próprios alunos. Quando nos fazem sentir bem, estamos à vontade, e mostramos de melhor de nós. Numa turma, retomei a leitura com a entoação adequada ao texto lido. A mesma estranheza da parte da assistência adolescente. Fiquei um pouco intimidada. Percebi que o texto, em francês, havia sido compreendido, ainda que não soubessem o que as palavras significavam. Fez-se um silêncio. Ninguém parecia manifestar-se. Surpresa? Incredulidade? Estranheza? Não sabia como interpretar o mutismo. Rompi o silêncio. Perceberam? O mesmo silêncio. Até que um aluno perguntou se poderia repetir o texto. Acenei que não. Um coro de pedidos juntou-se ao seu. Repeti. No final, o mesmo silêncio. Até que um aplauso contagiou toda a sala. “Parece uma actriz!”, foi o comentário. Agradeci. Fiquei contente embora receasse que o ruído incomodasse as aulas das salas contíguas. Antes desta turma, havia já experimentado o mesmo tipo de leitura com uma narrativa francófona, da lenda africana pertencente a uma ex-colónia francesa. A mesma estranheza. O mesmo sossego. Um aluno mais afoito que comenta “Ena, isso é que foi uma leitura”, o mesmo entusiasmo. Passados alguns dias, um pedido de uma colega no sentido de fazer uma leitura para a comunidade escolar na festa de Natal. As notícias voam nos espaços pequenos. Recusei. Não por má vontade, mas porque a ideia de representar para toda uma comunidade me assustava! Como é que, depois de tantos anos de interregno, voltei a este tipo de leitura que usava esporadicamente? Nada é por acaso. Numa das sessões de apresentação das obras de Gil Vicente e Luís de Camões, na Escola EB 2,3João de Meira, realizada pela dinâmica coordenadora da biblioteca, um actor minhoto, natural de Guimarães, apresentou “O Monólogo do Vaqueiro” representando desde a porta de entrada. Os alunos ouviam rendidos ao tom e à gravidade dos gestos solenes. Parecia estar perante a rainha D. Leonor. Tal como na minha leitura, os alunos não alcançavam grande parte do significado das palavras arcaicas, mas perceberam tudo com a magnífica representação. Os gestos aliados às palavras juntamente com o tom de voz foram a chave que abriu a porta da compreensão. Percebi o quanto perdera e fizera perder ao não utilizar mais essa arma sedutora que é a leitura expressiva! Perdi o embaraço provocado pelo medo de perturbar as aulas dos colegas evitando o ruído que se seguia, e perdi a vergonha ao compreender, finalmente, os sorridentes olhares de esguelha trocados entre alunos durante a leitura!
As memórias são algo muito curioso, pelo menos as que se relacionam com a infância. Podem nem estar relacionados com grandes acontecimentos, por vezes, são mesmo detalhes que vivem nos subterrâneos do nosso subconsciente durante quase toda uma vida para, de repente, despertarem e invadirem a privacidade do nosso consciente, como dragões há muito esquecidos e enterrados debaixo das várias camadas de terra. Há muito que não me lembrava disto, há muito que tal não me acontecia… Foi numa manhã, quando entrava na sala dos professores da escola, onde me encontro actualmente a leccionar, quando o meu olfacto me despertou a atenção para um cheiro que se insinuava pelo ar morno da sala. Um cheiro que me fez regressar a lugares recônditos da minha memória. Subitamente, vi-me catapultada para o infantário da minha infância. Para as pequenas mesas, rodeadas de cadeiras do mesmo tamanho, em cima das quais repousava um prato fumegante com umas papas que eu, ainda hoje, não consigo identificar… a não ser pelo cheiro! Não gostava particularmente do sabor mas, à semelhança das outras crianças, comia-a. Não sei se era a refeição da manhã ou do meio da tarde, a noção do tempo perdeu-se no nevoeiro da memória, e a imagem que obtenho dele surge desfigurada. Mas o cheiro ficou gravado, como um resistente fóssil, na minha já longa memória.
Olhei à minha volta à procura do responsável por tão grande e esforçada viagem ao meu passado longínquo, quando tantas memórias mais recentes parecem ter-se desvanecido como que por magia. Devo ter pensado em voz alta porque a Auxiliar de Educação, responsável pelo bar dos docentes da escola, respondeu de trás do balcão:
- Professora, acabei de deixar verter o leite fervido! – exclamou, enquanto se atarefava na limpeza do pequeno bico.
Estava explicado o mistério, mas só em parte: a papa que eu comia no infantário, e que tinham um aspecto esbranquiçado, eram cozidas no leite, e o sabor ao qual nós, as crianças, torcíamos o nariz, era a do das papas que se queimavam ligeiramente e se agarravam ao fundo e às paredes do tacho, criando uma mancha castanha-clara, com a qual todos nos familiarizámos ao longo das nossas vidas. Mas a papa, essa, ainda constitui um mistério guardado no cofre da minha memória. Não a consigo identificar. Nunca mais comi algo que se lhe pudesse assemelhar. A memória olfactiva ficou ligada, definitivamente, à sala do meu infantário, contígua à cozinha do mesmo.
Pois é… parece ter sido retirado de um dos quadros de Salvador Dali. Não sei porque me lembrei dele ou da sua obra, que eu tanto admiro, mas agora que recordo aquela cena, acho que o genial pintor lhe daria as cores e os contornos certas para retratar, fielmente, aquele momento.
Contei-o, na privacidade das quatro paredes. Jamais o tinha feito publicamente. Não sei porquê. Talvez por considerar a situação demasiado insólita para ser compreendida ou aceite por quem quer que seja. Mas aconteceu. Numa tarde, procurei alguém que desse uma olhadela aos meus textos, que iriam ser publicados dali a pouco tempo. A minha insegurança fez-me seguir o conselho de um conhecido. Procurei um senhor que se prestou a reler os meus textos. Sim, havia ali muita matéria que indicava que um dia iria ser uma escritora. Entre os grandes entusiasmos dele, ele deixou sair uma frase, que me deixou intrigada. Pegou num dos meus contos, e, sujeitando as folhas impressas ao peito, disse-me que ele iria daquele seria um projecto a dois. Eu fiquei de pé atrás. Não me agradou a ideia. Ele percebeu. A sua atitude modificou-se lentamente, à medida que percebia que aquele projecto a dois, nunca iria ter lugar. Fez questão, ainda assim, e depois de algumas hesitações, de apresentar o meu livro. Sugeri que poderia levar alguns do dele, para as pessoas darem uma olhadela, pois iria falar do trabalho dele, quando o apresentasse ao público presente na sala. Ele falou logo
12.40. Estou sentada na sala de atendimento de uma instituição pública financeira, à espera de ser atendida. A sala está quase cheia de pessoas que esperam pacientemente a sua vez. Os números passam lentamente no ecrã, colocado acima das nossas cabeças. No topo direito desse ecrã, um canal de televisão emite o seu programa que se prolonga por toda a manhã. Difícil distracção, quando temos de adivinhar o que os lábios mudos da apresentadora dizem. Chega a minha vez. Explico a minha presença naquela instituição. Não, não passam declarações com o número total de dias de descontos efectuados para aquela instituição pública. Insisto que a instituição, à qual devo apresentar essa declaração, quer o número de dias. Não, só passam declarações com a data do início e do término desses mesmos descontos. Penso para comigo que a declaração redigida naqueles termos serve perfeitamente, uma vez que prova o necessário – tenho mais de 365 dias de descontos. É isto que a instituição à qual se destina a declaração quer saber. A funcionária procura o meu número de subscritora no computador, preenche o papel que eu assino. Não, não sou Martins. Vai para cinco anos que perdi esse apelido, com o divórcio. Ela risca. Com a boa vontade de alguns trabalhadores, consigo trazer a declaração no próprio dia, que tiveram em conta o longo caminho que percorri, para ali estar. Telefona para o serviço de cadastros e avisa que já não tenho o último apelido. Volto à imensa sala de espera. Passado algum tempo, tenho a declaração nas mãos. Agradeço a dedicação da senhora e preparo-me para sair. Olho os papéis para ver se está tudo bem. Chocada, deparo-me com o apelido ainda colado ao meu nome. Volto atrás. O funcionário é outro. Substitui a colega que foi almoçar. Perplexo com a situação, ao princípio, ele não sabe muito bem como resolver o problema, sem começar tudo de novo. De repente, tem a solução: ele próprio passaria a tal declaração, assinada por ele, e com o selo branco da instituição, ficando ele com as provas do erro, caso houvesse algum problema. Mandou-me embora descansada. Regresso, no dia seguinte, à instituição com a declaração. Não foi a mesma pessoa que me atendeu. Não, não era aquela declaração, mas uma da segurança social. Expliquei-lhe o que acontecera. Não tinha os dias suficientes de segurança social para receber a bolsa por inteiro, uma vez que os professores nunca descontaram para a segurança social, mesmo quando uma vez pedi explicitamente para o fazerem, tal não aconteceu. Nunca tinham feito isso, nem sabiam como fazê-lo. Desisti. Agora, deparo-me sempre com o mesmo problema – para tudo pedem papéis da segurança social. Uma vez que descontei durante quase vinte anos, a primeira senhora que me atendera, perguntara-me se eu não poderia ir à Caixa, para a qual descontei tantos anos, e pedir essa declaração. Seguira o conselho da colega dela e deslocara-me lá na véspera, expliquei à nova senhora. Agora voltara tudo à estaca zero. Deparo-me com o problema da instituição que não passa declarações com o número total de dias de desconto e esta que não quer aceitar a declaração redigida naqueles termos, embora esteja bem explícito que esses descontos perfazem mais do que o tempo pretendido por eles. O português é bem claro – atesta o início e o término dos descontos. Não percebo a dúvida deles. Não me garantem a frequência do curso, por causa daquela declaração. A frustração tomou conta de mim. Deparo-me sempre com barreiras no meu caminho – quando não é a segurança social é a redacção das declarações. Não tenho muitas esperanças. Para terminar, a senhora foi muito animadora. Que deixasse a declaração, no meio de tantos candidatos, nada me garantiria a admissão ao curso. Isto é de doidos!
Fátima Nascimento
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