No M~es passado, algum tempo antes do Natal, acudi, na companhia da minha filha mais nova, a um hipermercado para nos abastecermos dos produtos alimentares normais. O hipermercado estava anormalmente cheio de pessoas e crianças deslizando pelos corredores em busca da realização do sonho natalício. Aumentando fluxo de pessoas, a estes espaços, diminui o espaço para a movimentação individual e aumenta o ruído e o tempo de espera para o acesso aos serviços do talho, peixaria, caixa registadora e, no fim, e como não poderia deixar de ser, temos de enfrentar a fila para o embrulho de prendas. É precisamente nesta época, e olhando ao elevado número de pessoas, que ocorrem as situações mais rocambolescas como esta a que assisti. Estava uma fila considerável para este último serviço, quando uma senhora idosa, que tinha tirado a sua senha de vez, olhou para o quadro e viu o seu número nele inscrito. Avançou prontamente, quando se viu confrontada com a evidência de que o número estava enganado: a empregada enganara-se a marcar e passara um número à frente, que era o seu. Uma senhora jovem, dando conta do erro, avançou prontamente com uma enorme caixa presa nos braços. Não tendo dado conta do erro, a idosa protestou mas foi imediatamente afastada por aquilo a que se assemelhava a uma rajada de palavras pronunciadas de forma impaciente e violenta. A frágil velhota regressou à fila explicando o seu erro. O que mais me fez impressão não foi o erro em si. Todos erramos e todos fazemos confusões. O que mais me chocou foi a violência com que a jovem senhora se dirigiu à velhota. Com razão ou não, a violência, ainda que seja só oral, não deixa de ser violência e indispõe quem está à volta e assiste a estas cenas escusadas. E, depois, numa época que apela em tudo para o amor e a boa vontade, não deixa de ser ainda pior. Acho que é uma boa altura para domarmos o nosso lado negro deixando-o dar lugar a outros sentimentos mais límpidos, quanto mais não seja para destoarmos da forma como agimos e sentimos durante o resto do ano. Se não fizermos este exercício agora, quando o faremos?
Felizmente, a minha filha estava afastada, tentando embrulhar a sua prenda com o jeito próprio dos seus oito anos. Um casal assistia divertido às tentativas falhadas mas determinadas da criança e, a dada altura, vejo-os a servirem de ajudantes colocando-lhe a tesoura a jeito e cortando-lhe a fita enrolando-a nuns caracóis engraçados. A miúda regressou com os olhos brilhantes e muito orgulhosa do seu embrulho. Reforcei o agradecimento da minha pequenita. Não há palavras capazes de reconhecer a simpatia das pessoas que, não estando obrigadas a nada, se interessam pelas outras ajudando-as. Naquele momento, e no gesto do casal, e ainda que breves instantes, existiu ali o espírito natalício que contrastava com o reboliço criado pelas outras duas senhoras.
Uma pequenina peça de teatro foi escrita por mim, no primeiro Natal que passámos sozinhos, os quatro - eu, e os meus três rebentos de onze, oito e alguns meses apenas - pelo menos para os mais velhos. Foi há oito anos atrás. Lembrei-me de a escrever para eles, a fim de a representarem na noite de Natal, para a família que mais não era do que os meus pais. Eles não andavam nada animados, e pensei que a peça lhes desse algum alento. Nada complicado para eles que não eram muito bons leitores e para quem a ideia de memorizar um texto não agradava nada. As ideias para o cenário começaram logo a surgir, numa torrente ininterrupta de ideias que se entrechocavam entre os dois mais velhos. Eu observava aqueles olhos retomarem o brilho que haviam perdido, por algum tempo. Ensaiaram algumas vezes, excitados por representarem essa peça para os avós. A sala era o nosso espaço. Depois de a mobília ter saído, ocupámo-la com as nossas imaginações, decorando-a ao nosso gosto. Como nos sentíamos bem ali, observando na escuridão, os efeitos intermitentes das vivas luzes amarelas da árvore de Natal ... as nossas mentes voando acima de tudo o que era matéria... mas depressa algo os empurrava para a terra. Os olhos infantis murchavam, por alguns momentos, para logo retomarem a luz que deles se perdera. Durante um desses ensaios, apareceu o Luís, amigo dos meus filhos e companheiro de aventuras do Bruno e da Maria, que agarrou a ideia de participar na peça. Criei mais uma personagem... Inês, na sua cadeirinha, seguia os seus movimentos com os olhos atentos. O cenário continuava a ser o motivo da disputa dos mais velhos que o imaginavam, cada um, à sua maneira. Eu olhava-os divertida. Não é preciso muito para colocar luz nos olhos das crianças... Mas a peça nunca foi representada. Desavenças entre os três por motivo da distribuição dos papéis, fizera com que o teatrinho morresse nas páginas de um ficheiro do computador.
Um dia, lembrei-me que esta minúscula peça poderia servir a alguém interessado. Poderia ser utilizada por infantários, escolas primárias, lares de idosos… uma vez que o pequeno texto não seria de difícil memorização. Depois, os cenários poderiam existir ou não, enfim, era uma pequenina peça mas com muitas potencialidades. Qual não foi o meu espanto, quando percebi que dois meses antes da época de Natal, a partir mais ou menos de Outubro as visitas ao blog aumentavam consideravelmente chegando a ultrapassar a centena de visitas diárias (119 visitas hoje!). O que mais me espantou é que, embora a maioria dos visitantes seja proveniente dos mais diversos pontos do país, continental e insular, e do Brasil, também há alguns das ex-colónias africanas, de alguns países da Europa e da América do Norte! E ainda não estamos na época natalícia! Depois dela, a procura adormece para acordar novamente, sobretudo a partir do mês de Outubro!
Fico contente por esta procura. Fico sobretudo contente por poder ser útil!
Para os interessados fica aqui o link: http://teatrinho.blogs.sapo.pt e para os menos entendidos basta irem ao google e escrever a palavra “teatrinho”. Ele leva-os lá.
O Natal é um período mágico. Nele se diluem todos os medos, todas as preocupações, todas as raivas, todos os ódios… Vive-se um clima de harmonia excepcional exclusiva desta época. A pessoa concentra-se exclusivamente nas festas que se avizinham, na comida, nas prendas, na família… mas há um sentimento morno no ar, que nada tem a ver com a coluna quente de fumo que se desprende da boca do assador das últimas castanhas da época. Os traços faciais estão mais diluídos e o rosto parece emitir uma luz que vem da alma. Há uma inevitável esperança que preenche os espíritos das pessoas com que nos cruzamos na rua. Mesmo vivendo momentos difíceis, que ameaçam prolongar-se por uns bons longos anos, as pessoas necessitam de viver este momento, que lhes dará o ânimo que irá sendo carcomido pelos bichos da incerteza e da instabilidade, ao longo do ano que se aproxima. Esse estado de espírito começa a desvanecer-se logo a seguir ao dia de Natal. As notícias, que preenchem os ecrãs, anunciam um ano problemático cheio de aumentos e desemprego, enfim… anunciam aquilo que todos já sabemos mas nos recusamos a encarar, porque não queremos perder esse estado de graça, com que somos agraciados nesta excepcional época – não existe abismo nenhum entre o novo ano e o precedente, mas uma simples continuação. As pessoas acordam do seu curto estado de graça, para enfrentarem novos e velhos problemas do país que não tem pessoas capazes de lidar com as situações criadas interna e externamente. As velhas soluções servem para tapar os velhos novos problemas existentes. Sim, porque dentro do sistema capitalista, os problemas repetem-se e, enquanto dermos mais importância ao dinheiro que às pessoas, menos soluções possíveis encontramos para ele. A dura realidade faz renascer os receios que ameaçam corroer o sentimento harmonioso que preenche as esfomeadas almas, desequilibrando-as e ameaçando-as novamente com o fosso do desânimo, para onde, invariavelmente, somos projectados, ano após ano. Sim, não se fecha nenhum ciclo (como gostamos de pensar) antes se continua o que estivemos durante um ano (e mais!) a percorrer. Somos, aliás, uma consequência dele.
Um Natal diferente não quer, necessariamente, dizer um Natal pior. Não houve a abundância de outros tempos, mas, em termos humanos, continuou a ser bom. Tivemo-nos uns aos outros, o que é o mais importante, o resto não interessa. Já há muito que percebi que, tal como aconteceu com Jesus, também, nós, os outros seres humanos, não pertencemos a este mundo. Vimos de Deus e vamos para Ele. A vida na terra não é mais do que uma passagem. É como um teatro que, em breve, terminará e o pano baixará, dando lugar a novas peças. A única coisa que nos resta é admirar e amar o planeta em que vivemos, admirando tudo quanto faz parte dele. É nele que está a nossa maior riqueza e não nos valores criados à sombra da vaidade e ganância humanas. Ver o mundo sob esta perspectiva, traz-nos de volta o espírito natalício, evitando que nos percamos por caminhos escuros e violentos. Não gosto da ideia da violência mesmo justificada com a necessidade de protecção, porque não acredito nela. Temos de nos defender, mas que seja do nosso semelhante, é que é triste. Esta ideia pressupõe um mundo escuro atrás de cada rosto sorridente. Eu optei por me afastar das pessoas que não interessam, continuando, contudo, a desejar-lhes o melhor. É uma forma de me proteger e manter a minha sanidade mental. Acredito, cada vez mais, que há pessoas boas, ou que lutam contra si próprias, para serem sempre melhores. Acredito naquelas que conseguem, através de tácticas diversificadas, livrar-se dos maus sentimentos que as levam a agir mal. Se uns conseguem outros também o conseguirão, é só quererem... mas nem todos querem. Enquanto a boa vontade for dominada pelos maus sentimentos que aprisionam as pessoas nas suas malhas, o mundo não consegue melhorar. O Natal talvez sirva para isso mesmo, para nos voltarmos para nós mesmos, (ainda que seja num só dia do ano!), e tentarmos ser melhores pessoas. Pelo menos que tentemos uma vez no ano... só assim será verdadeiramente Natal! Quando o Natal constituir um tal desafio, então, haverá verdadeiramente Natal e não só lindas decorações e prendas sonhadas que alimentam todo um comércio ávido de dinheiro. Assim, não será Natal só nesta época do ano, mas esse estado de alma alastrar-se-á ao resto do ano. Só assim se deixará de viver uma época, para se construir um mundo verdadeiramente melhor!
Neste sentido, o nosso foi um verdadeiro Natal.
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