Há aspectos da vida em que os dois nem se tocam. A sociedade agita as bandeiras do ideal de vida que nada tem a ver com a realidade. Depois, quando algo acontece mostrando isso mesmo, que os ideais são abandonados porque não se criaram infra-estruturas capazes de apoiar a vida das pessoas para que as suas vidas decorram sem sobressaltos. O que acontece quando algo corre mal? A tendência é a de apontar o dedo às pessoas confrontadas, muitas vezes, com problemas ou terríveis tragédias nas suas vidas. Geralmente, quem julga e condena os outros, encontra-se rodeado de um exército de auxiliares que apoia as diversas facetas das suas vidas. Agora, e os outros que, sem qualquer ajuda, se vêem a braços, para além do trabalho e, muitas vezes, dos problemas daí subsequentes, têm ao seu cuidado crianças e idosos que, à falta de autonomia, se encontram dependentes dos outros. Alguns deles com problemas de saúde física e psicologicamente graves. Não é fácil. Estes problemas trazem agravantes, se pensarmos na falta de dinheiro e do tempo, uma vez que as faltas ao trabalho são cada vez mais difíceis, ainda que justificáveis, o medo de perder a única fonte de rendimento… nada facilita a vida das pessoas. Depois, onde deixam as crianças e os idosos quando vão trabalhar? Vivendo numa sociedade materialista onde o trabalho é visto como uma fonte de rendimento, na primeira e na última fase das nossas vidas, encontramo-nos desprotegidos. Se não quiserem modificar nada a nível do emprego, então há que criar ou incentivar a criação de centros capazes de apoiar as famílias que têm a seu cargo idosos e crianças, para que estejam protegidos, durante a ausência dos adultos jovens. Para já não falar da falta de atenção a que estão sujeitos todos aqueles que não produzem (para não falar do trabalho infantil) ou deixaram, em determinado momento das duas vidas, de produzir, que se resignam a uma vida de prateleira, esperando as migalhas da atenção e dividindo-as com outros mais pequenos. Não é fácil uma situação destas para ninguém. A solução do lar é a mais fácil mas também a mais dispendiosa. Os infantários, quando existem, são poucos e limitativos ou privados e caros… Há que multiplicar as soluções. Só quando estas existirem e estiverem ao alcance de todos é que se pode apontar o dedo seja a quem for. Até lá, criem primeiro as condições. Ou, então, as pessoas que criticam que ajudem…
Fátima Nascimento
12.40. Estou sentada na sala de atendimento de uma instituição pública financeira, à espera de ser atendida. A sala está quase cheia de pessoas que esperam pacientemente a sua vez. Os números passam lentamente no ecrã, colocado acima das nossas cabeças. No topo direito desse ecrã, um canal de televisão emite o seu programa que se prolonga por toda a manhã. Difícil distracção, quando temos de adivinhar o que os lábios mudos da apresentadora dizem. Chega a minha vez. Explico a minha presença naquela instituição. Não, não passam declarações com o número total de dias de descontos efectuados para aquela instituição pública. Insisto que a instituição, à qual devo apresentar essa declaração, quer o número de dias. Não, só passam declarações com a data do início e do término desses mesmos descontos. Penso para comigo que a declaração redigida naqueles termos serve perfeitamente, uma vez que prova o necessário – tenho mais de 365 dias de descontos. É isto que a instituição à qual se destina a declaração quer saber. A funcionária procura o meu número de subscritora no computador, preenche o papel que eu assino. Não, não sou Martins. Vai para cinco anos que perdi esse apelido, com o divórcio. Ela risca. Com a boa vontade de alguns trabalhadores, consigo trazer a declaração no próprio dia, que tiveram em conta o longo caminho que percorri, para ali estar. Telefona para o serviço de cadastros e avisa que já não tenho o último apelido. Volto à imensa sala de espera. Passado algum tempo, tenho a declaração nas mãos. Agradeço a dedicação da senhora e preparo-me para sair. Olho os papéis para ver se está tudo bem. Chocada, deparo-me com o apelido ainda colado ao meu nome. Volto atrás. O funcionário é outro. Substitui a colega que foi almoçar. Perplexo com a situação, ao princípio, ele não sabe muito bem como resolver o problema, sem começar tudo de novo. De repente, tem a solução: ele próprio passaria a tal declaração, assinada por ele, e com o selo branco da instituição, ficando ele com as provas do erro, caso houvesse algum problema. Mandou-me embora descansada. Regresso, no dia seguinte, à instituição com a declaração. Não foi a mesma pessoa que me atendeu. Não, não era aquela declaração, mas uma da segurança social. Expliquei-lhe o que acontecera. Não tinha os dias suficientes de segurança social para receber a bolsa por inteiro, uma vez que os professores nunca descontaram para a segurança social, mesmo quando uma vez pedi explicitamente para o fazerem, tal não aconteceu. Nunca tinham feito isso, nem sabiam como fazê-lo. Desisti. Agora, deparo-me sempre com o mesmo problema – para tudo pedem papéis da segurança social. Uma vez que descontei durante quase vinte anos, a primeira senhora que me atendera, perguntara-me se eu não poderia ir à Caixa, para a qual descontei tantos anos, e pedir essa declaração. Seguira o conselho da colega dela e deslocara-me lá na véspera, expliquei à nova senhora. Agora voltara tudo à estaca zero. Deparo-me com o problema da instituição que não passa declarações com o número total de dias de desconto e esta que não quer aceitar a declaração redigida naqueles termos, embora esteja bem explícito que esses descontos perfazem mais do que o tempo pretendido por eles. O português é bem claro – atesta o início e o término dos descontos. Não percebo a dúvida deles. Não me garantem a frequência do curso, por causa daquela declaração. A frustração tomou conta de mim. Deparo-me sempre com barreiras no meu caminho – quando não é a segurança social é a redacção das declarações. Não tenho muitas esperanças. Para terminar, a senhora foi muito animadora. Que deixasse a declaração, no meio de tantos candidatos, nada me garantiria a admissão ao curso. Isto é de doidos!
Fátima Nascimento
Desde o último escândalo Casa Pia, e agora com estas últimas denúncias, a tutela do Estado sobre as crianças órfãs, é, novamente, questionável. Quem é o Estado? Para mim, o estado é uma cadeia difusa de rostos, um emaranhado de pessoas cuja responsabilidade no que se passa neste país é quase totalmente desconhecida. Digo quase, porque as pessoas são boas, mas não são estúpidas e têm uma ideia dos culpados, mas só
No caso da Casa Pia, a instituição é destinada a educar e a proteger as crianças que lhe são confiadas. E, de facto, não lhes falta nada, nada que o dinheiro possa comprar. Falta-lhes, talvez, o carinho e a protecção de alguém que os ame, os acompanhe individualmente no seu desenvolvimento pessoal até à idade, altura em que possam e saibam decidir por si próprios, e dar, então, um rumo às suas vidas. As crianças com falta de carinho e amor são as mais vulneráveis nesta selva humana, onde impera a lei do mais forte, física e psicologicamente. Com elas, trabalham pessoas que, findo o seu trabalho, regressam às suas casas e às suas famílias. Famílias de que carecem estas crianças. Um rosto que as acompanhe e que substitua o pai ou a mãe que tiveram mas não conheceram, em muitos casos. O que eu quero dizer, é que a instituição tem de repensar a sua estrutura e os seus meios para atingir os seus objectivos. Depois, há imensos exemplos, vindas de instituições privadas que podem servir de exemplo a essa mesma reestrutura. Refiro-me ao caso particular das aldeias SOS, onde as crianças são confiadas a um adulto que é, para todos os efeitos, o pai ou a mãe, dessa ou dessas crianças, e que as acompanha e lhes dá o amor, o carinho e a protecção de que elas tanto necessitam, para crescerem de forma equilibrada e sã. Pergunto-me se não é disto que as crianças da Casa Pia, pelo menos aquelas afectivamente mais carentes e desamparadas psicologicamente, precisam para se evitar mais casos de pedofilia. Não vamos ter a veleidade de pensar que, com estas medidas, vamos acabar com os pedófilos, que certamente terão de buscar ajuda, seja ela de que natureza for, provavelmente médica, (uma vez que a prisão não cura), ou com os gananciosos que, à custa da integridade física e psicológica de crianças, ganham dinheiro com tal negócio. Mas, pelo menos, ficamos com a consciência tranquila, sabendo que, onde se detectou o problema, resolveu-se. O que temos de fazer, e todos nós somos o Estado, uma vez que contribuímos para ele com os nossos impostos, na medida das nossas possibilidades, é exigir a prevenção de casos como estes tristemente conhecidos da Casa Pia, com medidas adequadas.
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