Uma tarde, o meu pai chegou a casa e disse que um senhor o tinha convidado para visitar a sua quinta. Nós iríamos também. A minha mãe, que arrumava a cozinha, franziu o cenho. Não lhe agradava ideia. O meu pai insistiu. O homem precisava de ajuda! Um amigo do meu pai falara ao senhor do grande espírito da filha. Apresentara o problema ao meu pai. Este, sempre pronto a ajudar, aceitara. Talvez pudessem perceber o que se passava com o animal. Lá fomos.
O céu primaveril mostrava um céu tingido de nuvens. A quinta ficava na ponta norte da vila, não muito longe do prédio onde vivíamos. O acesso era íngreme e entrámos num portão largo. De um lado, a casa e, a alguns metros da mesma, a cavalariça.
Depois de uma visita rápida pela quinta, os nossos passos desviaram-se para o alvo da nossa visita – a cavalariça. Era um edifício moderno, espaçoso e arejado. Os fardos de palha encostados à parede precediam as baias onde os cavalos dormitavam na penumbra. O corredor abria-se à nossa frente. Do lado direito, dois animais mansos tiravam partido da calma da tarde. Mais à frente, do lado oposto um cavalo solitário. Aproximámo-nos. O cavalo soltou um relincho nervoso enquanto os olhos poisados em mim, pareciam querer solar-se das órbitas. Os adultos calaram-se tentando perceber o eu se passava. O nervosismo do animal acentuava-se. Os olhos pareciam colados à coroa da minha cabeça. O meu pai, frustrado, não conseguia perceber o problema que enlouquecia o animal. O homem concordou aparentemente rendido também. Continuaram a conversar ignorando os relinchos enfurecidos do animal. Foi então que percebi, pela minha visão lateral, que o homem se concentrava na minha pessoa. A minha mãe, incomodada com o ruído ensurdecedor do animal, caminhava para a saída. Eu não me conseguia mexer. Uma força invisível imobilizava-me. O terror ameaçava tomar conta de mim. A voz do animal parecia forçar a sua entrada no meu corpo. Algo em mim se debatia tanto quanto aquele animal. Era como se uma força saísse do animal e tentasse entrar em mim! Um duelo estranho e desigual. O olhar do homem colava-se intensamente também em mim enquanto o meu pai conversava distraidamente com ele. Finalmente, o homem descontraiu o corpo num gesto de desistência. Encaminhámo-nos rapidamente para o exterior. A minha mãe passeava meditativa. O homem despediu-nos rapidamente. Tinha um compromisso. Reencontrámos, sozinhos, o portão. O pequeno Mini esperava-nos.
De regresso a casa, os meus pais conversavam enquanto viam o filme espiritual da visita à quinta. A minha mãe não gostara da visita. Até que perceberam algo de estranho na atitude do homem. Ele percebera o que se passava com o animal! Mais! Ele tentara passar a energia incómoda, que perturbava o animal, para mim! Os meus pais entreolharam-se, horrorizados! Eu bem que não queria ir, dizia a minha mãe, algo me dizia que não era boa ideia! O meu pai ainda não se recompusera da descoberta feita.
Olha o que aconteceria à miúda, volveu ele, com uma perplexidade horrorizada.
Anos mais tarde, o meu pai contou, na minha presença, a um grande amigo seu que, ao ver o filme espiritual, corroborou as suspeitas dos meus pais. Calaram-se, aterrados com a audácia do homem para a realização do mal. Optara por prejudicar uma criança para salvar o animal, símbolo da sua vaidade.
Regresso à minha infância. Tempo indeciso. Local preciso. Cenário estranho. Personagens duvidosas.
Brincadeira em casa de uma vizinha. Normalidade aparente. Duas cabeças debruçadas sobre uma precária construção de lego. Poucas peças. Os minúsculos bonecos de plástico. O interesse. A alegria. A personagem vivida na boneca.
Súbita interrupção. Um homem ansioso. Perdido. Alucinado. Feroz. Sinal gestual para a filha. O acordo tácito. Altura de ir! Vens! E trá-la! A minha confusão. A miúda acompanha o pai. Olhar saudoso lançado às bonecas. Recusa íntima. Aviso? A continuação da narrativa imaginária. A minha boneca. O meu eu plástico. O movimento da boneca no cenário infantil escondida entre o polegar e o indicador. O fio da narrativa tecendo novos meandros. Nova interrupção. Vozes adultas alteradas. Presença da miúda mesmo necessária? A minha presença exigida pelo homem. A miúda tem de estar aqui. Sim! A impaciência da mulher. A voz masculina alterada pelo medo. Insistência. O meu nome suspenso do ar agitado. O meu afastamento relutante. O abandono saudoso da brincadeira. O corredor obscuro. A agitação no hall de entrada. Paragem à entrada. O meu atrevimento morre à entrada. Cenário macabro. Estupefacção. Porta estranhamente decorada. Réstias de cebolas. Réstias de alhos. Ferraduras suspensas de fitas e descuidadamente pintadas de cinzento. As incorrecções geradas pelo uso deficiente da improvisada maquilhagem. O nervosismo masculino. A aflição na fronteira da loucura. A presença da filha e da mulher à esquerda. O contágio do nervosismo. A dança do homem no espaço vazio. Não se mexam. Redistribuição do espaço. A miúda empedernida. Só a mente funciona. Os sentidos alertados. A bandeira vermelha erguida. A insegurança. A incompreensão. A minha estátua. O avantajado traseiro esticado na minha direcção. Os olhos colados à abertura do correio. A pala perpendicular ao ângulo da porta. O sol inundando a rua empoeirada com os dentes brancos salientes. A vontade de encontrar aquele sol. O arrefecimento do espírito. O tremor da voz masculina. Está achegar! Está a chegar! Para a mulher e a filha. Estão a sentir? Negação da cabeça. Os olhos fixos no filme ausente. Admiração. Não? Eu sinto. Nervosismo acentuado. Como é que vocês não sentem? As duas vozes femininas. Eu não sinto nada. A minha confusão. Incompreensão. A minha figura aprisionada. A mente aguçada pelo instinto. Que se passava? Estariam à espera de alguém? Um homem? Seria mau? Porque teria de estar ali? Acordo dos pensamentos. Novamente a voz masculina. Está rua! Agora já devem sentir! O aceno afirmativo das duas colaboradoras. A voz da mais velha. Agora já sinto! Corroboração da mais nova. A minha mente aprisionada no corpo sem vontade. A minha incompreensão. A minha aflição. O desejo do refúgio do lar vazio. A impossibilidade de me mexer. O terror vomitado do homem. Os cruéis lábios finos tensos de medo. O rosto despido dos imprescindíveis óculos. As faces lívidas. A observação cautelosa da superfície do meu crânio com a mesma mal disfarçado ódio. Regresso à posição vigilante. A pala da abertura do correio baixa como uma cortina. A coragem escondida nos bolsos das calças imensas. O proeminente estômago ameaçando a carpete da entrada. Levantamento arriscado do pesado corpo. Sinal com a mão. Os outros dois seres atentos. Quatro estátuas suspensas nas malhas do tempo. O meu desconcerto. Incompreensão. Impaciência. Um teatro macabro fraco enredo. Desconhecimento do meu papel naquele cenário. Subitamente. O movimento das estátuas humanas. O alívio. O sussurro. Já passou! As mãos agitadas como vassouras. O triunfador sorriso sereno para a esposa e a gaiata. Uma frase corre aos meus ouvidos. A calvície reluzia. Eu disse que conseguia! A miúda sem se conseguir mexer. O alerta da mulher. Esquecera a minha estátua. Já podia ir. Sem necessidade de me prender. A corrida para casa. As queixas. A indiferença da minha mãe. Omissão da situação ao meu pai. Polícia. O medo das possíveis zangas. Revelação ao meu pai. Cólera justa. Decisão. Caminho para a casa do vizinho. Passo determinado. A segurança da atitude. Recebido à porta. Responsabilização do adulto. Tentativas de explicação infrutíferas. Não é a sua filha! Queria ver se fosse! Palavras atiradas à cara do prevaricador. A ameaça. As largas costas vencidas pelo medo.
Dias mais tarde. Em casa. Palavras da mulher. Avisei-te. Resposta. Pensei que a mulher o segurava. Consegue sempre! Ainda a mulher. Mas isto foi muito grave. A voz do marido. Espero que isto não se espalhe. A mesma voz de suporte afectivo. Ninguém fala disto! Insistência do meu carrasco espiritual. Mas os colegas. Os familiares. Narrativa dos acontecimentos ao meu tio. O irmão mais velho do meu pai. Aos meus avós. A mesma revolta. Apoio ao meu pai. Condenação da minha mãe. Condenação dos vizinhos. Apoio familiar ao meu pai. Sensação de segurança retomada. A justiça feita. O pai. O defensor da sua filha. O meu justiceiro.
O mundo parece dividir-se entre aqueles que têm contacto e aqueles que não o têm. Depois, há aqueles que, para além do contacto, têm espíritos e aqueles que só têm o contacto, isto é, aquelas pessoas que vêem e falam com eles. Finalmente, há aqueles que não têm contacto, mas que sabem que esse mundo dos espíritos existe, pois os pais ensinaram-lhes isso e há aqueles a quem os pais optaram por não falar. Depois, há aqueles indivíduos que têm espíritos com eles, mas que não têm contacto com eles. Eu estou inserida no último grupo. Sempre tive grandes e bons espíritos que me acompanharam, e dos quais nunca tive consciência, pois esse mundo havia sido vedado à minha educação, por escolha dos meus pais, mais da minha mãe. Apesar da ignorância em que estava imersa, e das atitudes mais absurdas com que me deparava sempre tocava em tal assunto, eu sempre tive consciência, (sempre senti) que tinha algo que outros cobiçavam ou usavam. Mais tarde, alguns familiares contaram-me tudo, e estou-lhes eternamente agradecida pelo terem-no feito. Modificou alguma coisa na minha vida? Não! Mas deu para entender muitos acontecimentos maus que ocorreram na minha vida, e para os quais eu não tinha explicação. Nada beneficio ou beneficiei com a presença desses espíritos, sobretudo de um, o maior que tinha (tenho) comigo e que todos consultam menos eu. O que me deu sempre muita raiva, foi a má utilização que lhe deram, no sentido de me prejudicarem. Desde pequena que algumas vizinhas de infância começaram a limpar a minha memória daquilo que elas viam que iria constituir um momento grande na minha vida. Na minha vida adulta, muitas outras pessoas ligadas à minha profissão (ou não), continuaram o mau trabalho que elas iniciaram, prejudicando-me para que não conseguisse o êxito, que sempre ignorei, mas que elas haviam descoberto, algures, no meu futuro. Embora me tivessem vedado esse mundo, ele esteve sempre presente no mal que me foram fazendo ao longo da vida. E houve muito. Mais do que a imaginação ou o conhecimento de muitos pode atingir. Sei que vou continuar a ser perseguida pelo tal mal, toda a minha vida, uma vez que os predadores nunca se cansam ou fartam. Então aqueles que, para além do contacto, têm espíritos com eles, nunca vão parar, pois raros são os espíritos que por aí andam e que sejam boa índole. Se assim não fosse, estariam no céu. Depois, enquanto os fins justificarem os meios, estamos todos sujeitos ao mal. Ao longo da minha vida, fui também tomando conhecimento de casos que começaram por ser de inveja, para acabarem quase com a vida das pessoas invejadas. Muitas delas foram socorridas por pessoas que dedicam as suas vidas a curar esse tipo de males e que merecem mais consideração pelo benefício que trazem aos outros. É claro que há aldrabões em todas as profissões e neste caso também os há, e é preciso estar atento a isso, mas se ignorarmos estes, acho que todos reconhecem a boa causa a que estas pessoas anonimamente se dedicam. Eu tive a oportunidade de conhecer algumas, e de provar o bom trabalho que realizam na ajuda ao próximo. Agora, uma maneira de minorar, (já não digo acabar, porque isso está só nas mãos de Deus), seria falar abertamente, sem tabus, destes assuntos, porque quando dizemos que essas “coisas” não existem, ou que não acreditamos, estamos a pactuar com o mal, porque quem não sabe dos males provocados pela via espiritual, não se sabe defender deles nem procurar pessoas acreditadas que as possam ajudar, e, dessa forma, estamos a pactuar, consciente ou inconscientemente com o mal. A neutralidade, neste campo, não existe… E eu que o diga, ou os meus filhos que têm sido também grandes vítimas…
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