Um dia, a minha filha mais velha chegou a casa e, enquanto estava a preparar o jantar, veio até mim e começou a conversar. Não é muito habitual nela. De todos os meus filhos, é a mais reservada. Também nunca forcei nada. Basta-me que saibam que estou presente sempre que precisam de mim. Nunca gostei de controlar porque aprendi que ninguém controla ninguém e que os mais controlados são exactamente os que metem em apuros. Conheci muitos casos ao longo da minha vida! Contou-me que, nessa tarde, durante uma aula, a turma estivera a conversar com uma professora sobre as notas, e uma das alunas mais fracas, comentava que tinha de subir as notas senão, como represália, a mãe retirar-lhe-ia o telemóvel. A minha filha ficou espantada. “Eu sei que tenho de levantar as notas, não preciso que ninguém me tire nada!”, replicou. A professora não ficou indiferente à sua intervenção: “É assim que deve ser!”, comentou. A outra rapariga remeteu-se ao silêncio. Escusado será dizer que fiquei orgulhosa. Não tenho uns filhos muito estudiosos, mas são boas pessoas. Orgulho-me disso. Ela está no décimo ano, e, como não estava habituada a estudar muito, tirou algumas negativas no primeiro período. Ficou inconformada! E serviu-lhe de emenda! Recuperou as notas a essas duas disciplinas, no segundo período! Lição aprendida!
Eu já tinha ouvido posições idênticas dos Encarregados de Educação da minha turma e tinha explicado que não era assim que deveriam proceder. “Se não faço isso, como é que o vou controlar”, perguntava-me um pai desesperado. Expliquei-lhe que era ajudando o aluno a estudar e não repreendendo-o ou castigando-o. Percebi que estava a usar uma estratégia que era nova para ele. Estava habituado às repreensões! Fora criado assim! Espero que tenha aprendido. Fica aqui a ideia…
Um dia destes fiquei sem carro. Teve de ir à oficina preparar-se para mais uma inspecção. Levei-o perto da hora do almoço e, como aquela estivesse cheia de carros, tive de o deixar lá, durante toda a tarde. O dono da oficina, que vinha almoçar a casa, deu-nos boleia, a mim e a outra senhora, cujo carro também teve de lá ficar. Pedi que me deixasse perto da escola, onde anda a minha filha mais nova. Um vento frio e violento corria pelas ruas desprotegidas. Fiz o resto do percurso a pé, aconchegando-me no casaco fino. Como ainda faltavam alguns minutos, refugiei-me no café que abrira recentemente e cuja dona é mãe de uma das pequenitas da sala da minha filha. Estivemos à conversa até à hora do toque. Dirigimo-nos ao portão, temendo pela falta de agasalho que muitas vezes os caracteriza, até nos dias frios. A minha filha vinha de mochila às costas e casaco na mão. Insisti para que vestisse o casaco. Deu-me a mão, naquele gesto infantil, à qual já me havia desabituado com os irmãos. Tomámos o caminho de casa da avó. Íamos lá almoçar. Durante o trajecto, fez-me queixas. Já há algum tempo que me vinha fazendo queixas de um menino que bate a todos menos a um. Estava a pedir-me conselhos indirectamente. Fui-lhe dando alguns, à medida que caminhávamos. E se ela conversasse com ele? Se lhe dissesse que queria ser amiga dele, mas que não podia porque ele teimava em bater-lhe sempre que estava junto dela e lhe mostrasse que o mesmo acontecia aos outros meninos? “Não!”-respondeu, horrorizada. “Assim, ele bate-me!” Perguntei-lhe se já se interrogara porque é que ele não batia no outro menino. Ela acenou negativamente. Não seria porque ele era o único que não mostrava medo dele? Ficou pensativa. Percorremos o resto do caminho
Continuo à espera. Olho para os lados. As pessoas que, tal como eu, esperam a sua vez, parecem indiferentes ao que se passa à sua volta. Só levantam a cabeça, durante longos períodos mergulhada numa revista, para se assegurarem de que não chegara a sua vez. Algumas murmuram conversas privadas, olhando em redor, de vez em quando, como que para se certificarem de que ninguém segue as suas palavras. Alguns senhores idosos dormitam, acordando sobressaltados ao som da campainha que assinala a passagem do número que marca a vez de cada um. Eu, por meu lado, vou ouvindo música com os auriculares, olhando distraidamente para o pequeno ecrã mudo, que emite um programa matinal.
Passado algum tempo, entra um jovem moreno, alto e magro com uma resma de exemplares de um periódico debaixo do braço, bem conhecido do público em geral, e dirige-se ao fundo da sala. Passou rapidamente por mim, como se perseguisse alguém. Uns segundos mais tarde, estava ele a percorrer a primeira das cinco filas de cadeira bem alinhadas, estendendo, desajeitadamente, em movimentos soltos, o exemplar apontado ao peito das pessoas. Falava baixo e mal se ouviam as suas palavras. Ao princípio, a reacção dos presentes foi de choque, para logo crescer para a indignação. Revoltavam-se contra as circunstâncias de vida que levavam aquele rapaz, ainda em idade escolar a trocar a escola por aquela vida. O rapaz aproximou-se de uma senhora que abrira a mala e se dispunha a comprar um exemplar. Ela colocou-lhe algumas questões às quais ele respondeu ao acaso, como se se tentasse libertar de uma mão rígida que, de repente, o agarrasse com força. Falava com a certeza de que aquela conversa não lhe iria resolver os seus problemas. Ele frequentava a Escola da Amadora, entrava às 15h e sim, ele tinha tempo para tudo. A indignação da senhora subiu de tom. Recuou na sua intenção, não pactuaria com situações dessas, porque seria alimentá-las. Tive pena do moço. E, sobretudo, compreendia-o na sua atrapalhação. Ele estava a fazer um trabalho a que estaria, de alguma forma, obrigado, já que se sentia o pouco à vontade que se desprendia dos seus modos no contacto com as pessoas: ele agia como se quisesse desaparecer após o primeiro contacto com os possíveis clientes. Frustrado e desanimado, o rapaz abandonou a sala, perseguido pelas vozes indignadas que, desta vez, se manifestavam contra o governo. Passados uns minutos, entraram duas garotas, com idades compreendidas entre os oito e os catorze anos, com os exemplares daquele periódico. Não sei se estariam unidos por algum laço de parentesco ou apenas pelas circunstâncias da vida que os aproximara. A mais novinha apertava os exemplares contra o peito, com se os quisesse proteger contra as invectivas dos presentes. Atrapalhadas, e algo amedrontadas com a violência da indignação que tomava conta das pessoas, elas saíram precipitadamente. Nunca mais os vi. Penso no que sentiriam após aquela inesperada recepção, tão diferente da habitual indiferença a que estão habituados ou dos gestos distraídos das mãos que se estendem para a solidariedade. Adivinho a batida apressada do coração, a voz estrangulada e a frustração própria daqueles que são as principais vítimas da sociedade, e que não vêem solução ajustada para o seu problema. Vivemos no século XXI, com os problemas sociais dos outros séculos.
Fátima Nascimento
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