Um Natal diferente não quer, necessariamente, dizer um Natal pior. Não houve a abundância de outros tempos, mas, em termos humanos, continuou a ser bom. Tivemo-nos uns aos outros, o que é o mais importante, o resto não interessa. Já há muito que percebi que, tal como aconteceu com Jesus, também, nós, os outros seres humanos, não pertencemos a este mundo. Vimos de Deus e vamos para Ele. A vida na terra não é mais do que uma passagem. É como um teatro que, em breve, terminará e o pano baixará, dando lugar a novas peças. A única coisa que nos resta é admirar e amar o planeta em que vivemos, admirando tudo quanto faz parte dele. É nele que está a nossa maior riqueza e não nos valores criados à sombra da vaidade e ganância humanas. Ver o mundo sob esta perspectiva, traz-nos de volta o espírito natalício, evitando que nos percamos por caminhos escuros e violentos. Não gosto da ideia da violência mesmo justificada com a necessidade de protecção, porque não acredito nela. Temos de nos defender, mas que seja do nosso semelhante, é que é triste. Esta ideia pressupõe um mundo escuro atrás de cada rosto sorridente. Eu optei por me afastar das pessoas que não interessam, continuando, contudo, a desejar-lhes o melhor. É uma forma de me proteger e manter a minha sanidade mental. Acredito, cada vez mais, que há pessoas boas, ou que lutam contra si próprias, para serem sempre melhores. Acredito naquelas que conseguem, através de tácticas diversificadas, livrar-se dos maus sentimentos que as levam a agir mal. Se uns conseguem outros também o conseguirão, é só quererem... mas nem todos querem. Enquanto a boa vontade for dominada pelos maus sentimentos que aprisionam as pessoas nas suas malhas, o mundo não consegue melhorar. O Natal talvez sirva para isso mesmo, para nos voltarmos para nós mesmos, (ainda que seja num só dia do ano!), e tentarmos ser melhores pessoas. Pelo menos que tentemos uma vez no ano... só assim será verdadeiramente Natal! Quando o Natal constituir um tal desafio, então, haverá verdadeiramente Natal e não só lindas decorações e prendas sonhadas que alimentam todo um comércio ávido de dinheiro. Assim, não será Natal só nesta época do ano, mas esse estado de alma alastrar-se-á ao resto do ano. Só assim se deixará de viver uma época, para se construir um mundo verdadeiramente melhor!
Neste sentido, o nosso foi um verdadeiro Natal.
Um dia destes, tive de ir ao hospital com a minha mãe, devido a uma queda, ocorrida no passado domingo. Ela telefonara-me, na terça de manhã, dizendo que não se sentia bem e que precisava de ir ao médico. Como o meu pai sofre de Alzheimer, embora ele esteja lúcido, graças à medicação acertada, não o podíamos deixar sozinho, até porque não sabíamos quando regressaríamos. Chegados ao hospital, e depois de realizada a inscrição, sentámo-nos à espera da chamada da triagem. Só havia duas pessoas à espera: um senhor de idade e uma criança, acompanhada da mãe. Como a regra hospitalar não permite mais de duas pessoas, e como não podámos deixar o meu pai sozinho em lugar estranho, sem nenhum familiar próximo à vista, e como o estado de saúde da minha mãe assim permitia, expliquei a esta que precisava de fazer uns pagamentos e que aproveitava e levava o meu pai. Metemo-nos dentro do carro e dirigimo-nos à caixa Multibanco de um conhecido supermercado. Efectuados os pagamentos, levei o meu pai à casa de banho, sempre orientando-o do lado de fora. Lá saiu. Aproveitámos para dar um passeio, ao mesmo tempo que espreitava preços e produtos. O Natal está aí, e como o orçamento familiar diminuiu consideravelmente, terei de me limitar a uma compra por mês, uma para cada miúdo, dentro de um limite. Foi numa dessas voltas, que mostrei ao meu pai o quanto estava feliz por tê-lo comigo, o quanto gostava dele e o que ele sempre representara para mim, desde pequena. Ele fora sempre o meu herói! Tudo isto foi dito de uma forma alegre e descontraída, que caracteriza nossa relação. O meu pai sempre foi um homem muito introvertido, deixando raramente transparecer aquilo que lhe ia na alma, pelo que não esperava grande reacção. Eu aproveitara aquele momento em que passeávamos os dois de braço dado, devagar, ao ritmo dele, para lhe dizer aquilo que sempre senti, mas que nunca tivera oportunidade de lhe dizer antes, convenientemente. Foi ali. Deu para ver a emoção estampada no seu rosto. Parou, voltou-se devagar para mim e olhou-me “Eu tenho muito orgulho em ter uma filha como tu! És alegre e boa companhia. Gosto muito de andar contigo.” Tudo isto numa tirada só. Nunca ele expressara de forma tão aberta e tão franca o que lhe ia na alma. Ficámos os dois parados a olhar-nos emocionados, até que eu voltei a colocar o meu braço no dele, dando início a outra volta. Encontrámos pessoas de há muito tempo, que haviam feito parte da nossa vida. Novas emoções. Novidades. No regresso, ao volante, enquanto falava com ele, eu pensava naquele momento importante, que tanta realização pessoal nos havia dado e tanta felicidade. Foram precisos muitos anos, para que, finalmente, puséssemos em palavras o que nos ia na alma!
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