Estamos a atravessar um túnel do qual levaremos algum tempo a ver a luz do sol e, quando finalmente o virmos, vai ser sempre uma breve aberta no farto céu cinzento, para, logo de seguida, mergulhar noutra. O que pode variar é o grau de gravidade da mesma. Se olharmos para trás, para a nossa história económica, o país viveu, salvas as devidas excepções, imerso
O Natal é um período mágico. Nele se diluem todos os medos, todas as preocupações, todas as raivas, todos os ódios… Vive-se um clima de harmonia excepcional exclusiva desta época. A pessoa concentra-se exclusivamente nas festas que se avizinham, na comida, nas prendas, na família… mas há um sentimento morno no ar, que nada tem a ver com a coluna quente de fumo que se desprende da boca do assador das últimas castanhas da época. Os traços faciais estão mais diluídos e o rosto parece emitir uma luz que vem da alma. Há uma inevitável esperança que preenche os espíritos das pessoas com que nos cruzamos na rua. Mesmo vivendo momentos difíceis, que ameaçam prolongar-se por uns bons longos anos, as pessoas necessitam de viver este momento, que lhes dará o ânimo que irá sendo carcomido pelos bichos da incerteza e da instabilidade, ao longo do ano que se aproxima. Esse estado de espírito começa a desvanecer-se logo a seguir ao dia de Natal. As notícias, que preenchem os ecrãs, anunciam um ano problemático cheio de aumentos e desemprego, enfim… anunciam aquilo que todos já sabemos mas nos recusamos a encarar, porque não queremos perder esse estado de graça, com que somos agraciados nesta excepcional época – não existe abismo nenhum entre o novo ano e o precedente, mas uma simples continuação. As pessoas acordam do seu curto estado de graça, para enfrentarem novos e velhos problemas do país que não tem pessoas capazes de lidar com as situações criadas interna e externamente. As velhas soluções servem para tapar os velhos novos problemas existentes. Sim, porque dentro do sistema capitalista, os problemas repetem-se e, enquanto dermos mais importância ao dinheiro que às pessoas, menos soluções possíveis encontramos para ele. A dura realidade faz renascer os receios que ameaçam corroer o sentimento harmonioso que preenche as esfomeadas almas, desequilibrando-as e ameaçando-as novamente com o fosso do desânimo, para onde, invariavelmente, somos projectados, ano após ano. Sim, não se fecha nenhum ciclo (como gostamos de pensar) antes se continua o que estivemos durante um ano (e mais!) a percorrer. Somos, aliás, uma consequência dele.
A língua que falamos, actualmente, não foi sempre assim, como hoje a falamos e escrevemos. Sofreu modificações ao longo de muito tempo. Como todo o organismo vivo, ela “nasceu”, cresceu e, se não quiser morrer, tem de continuar a adaptar-se aos novos tempos e a modificar-se com eles. Uma das modificações mais engraçadas, a nível da língua, considero eu, são as modificações de sentido que as palavras assumiram ao longo do tempo. Algumas delas começaram por traduzir uma realidade, e, com a evolução dos tempos, o seu significado modificou-se para traduzir uma realidade que pouco ou nada tinha a ver já com a do início. A semântica sempre foi um campo que me fascinou. Acho também fascinante como uma língua, mesmo numa determinada época, começa a dar significados diferentes a determinadas palavras, ou a incluir, na mesma palavra, outro significado ou outros significados. Isto nota-se na linguagem oral e também, obviamente, na linguagem escrita, uma vez que a maioria das pessoas tem a tendência de escrever como fala. É precisamente esta característica da língua que me atrai. Não gosto de pensar na língua como um organismo estagnado mas em constante mutação, em constante evolução. E as evoluções têm custos. Muitas palavras perdem-se e ganham-se outras. (Tenho muita pena de uma palavra portuguesa, muito engraçada que parece ter sido, definitivamente, substituída pela inglesa, “clip”. Tenho perguntado a muita gente, muita da qual não tem ideia sequer de ter havido outra palavra para designar esse objecto. Eu acabei por me esquecer.) Paciência. Aliás, a língua que nós falamos foi o resultado da evolução da língua falada pelo povo (e é aqui que ela sofre mais modificações na semântica, sintaxe, no léxico, etc.); da língua erudita, só nos ficaram algumas palavras que chegaram até nós, quase intactas, a par com a sua homóloga popular, e pouco mais. O que, neste momento, é erro, será, daqui a uns tempos, a forma correcta de expressão e, daqui a uns bons tempos, alargar-se-á o campo de significados de uma mesma palavra ou modificar-se-á o seu significado. Ao conversar com algumas pessoas, sobretudo a nível popular, nota-se já que algumas palavras são usadas com outro significado, se estivermos atentos ao contexto em que foram aplicadas. Isto, é claro, deve-se a várias situações, sobre as quais não me vou debruçar aqui. Aquela palavra naquele contexto é considerada erro por alguém que, como eu, conhece a língua mas, entre os seus pares, as pessoas usam-na com aquele significado, sem se darem conta de que, actualmente, a palavra em questão tem um significado diferente que não traduz exactamente a ideia que tem em mente quando a utiliza. Agora, uma questão se levanta. Se assim é, vale a pena ensinar uma língua? Sim, vale a pena. O que não podemos é ter a veleidade de pensar é que ela, dessa forma, não sofre corrosão. Pela minha experiência, o ensino é só uma parte da vida do aluno. Ele é observado e corrigido nas salas de aula e, muitas vezes, em forma de brincadeira, fora delas, mas, quando o aluno regressa ao seu bairro e à sua casa, ele, mesmo esforçando-se por falar correctamente, como lhe foi ensinado, a tendência natural é a de voltar a repetir a língua, tal como ouve e ouviu durante tantos e importantes anos da sua vida… muitas vezes, eles mesmos, por timidez, e para não quererem destoar, acabam por se deixar influenciar de novo. Outra questão se pode colocar, é se uma criança, proveniente de classes desfavorecidas, poderá, alguma vez, falar correctamente a sua língua. É claro que sim, desde que a sua vontade seja mesmo essa. Mas nunca poderá, nem deverá esquecer é que a língua segue o seu processo de evolução, e nem sempre é aquele que esperamos ou desejamos. Cabe à linguística o trabalho de acompanhar e registar as novidades dessa evolução na gramática. Será talvez este o novo caminho da linguística, da nova linguística, daquela que se debruça sobre a nobre tarefa de estudar a língua falada e de registar as modificações que sofre. Já se faz…
Fátima Nascimento
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