Um dia destes fiquei sem carro. Teve de ir à oficina preparar-se para mais uma inspecção. Levei-o perto da hora do almoço e, como aquela estivesse cheia de carros, tive de o deixar lá, durante toda a tarde. O dono da oficina, que vinha almoçar a casa, deu-nos boleia, a mim e a outra senhora, cujo carro também teve de lá ficar. Pedi que me deixasse perto da escola, onde anda a minha filha mais nova. Um vento frio e violento corria pelas ruas desprotegidas. Fiz o resto do percurso a pé, aconchegando-me no casaco fino. Como ainda faltavam alguns minutos, refugiei-me no café que abrira recentemente e cuja dona é mãe de uma das pequenitas da sala da minha filha. Estivemos à conversa até à hora do toque. Dirigimo-nos ao portão, temendo pela falta de agasalho que muitas vezes os caracteriza, até nos dias frios. A minha filha vinha de mochila às costas e casaco na mão. Insisti para que vestisse o casaco. Deu-me a mão, naquele gesto infantil, à qual já me havia desabituado com os irmãos. Tomámos o caminho de casa da avó. Íamos lá almoçar. Durante o trajecto, fez-me queixas. Já há algum tempo que me vinha fazendo queixas de um menino que bate a todos menos a um. Estava a pedir-me conselhos indirectamente. Fui-lhe dando alguns, à medida que caminhávamos. E se ela conversasse com ele? Se lhe dissesse que queria ser amiga dele, mas que não podia porque ele teimava em bater-lhe sempre que estava junto dela e lhe mostrasse que o mesmo acontecia aos outros meninos? “Não!”-respondeu, horrorizada. “Assim, ele bate-me!” Perguntei-lhe se já se interrogara porque é que ele não batia no outro menino. Ela acenou negativamente. Não seria porque ele era o único que não mostrava medo dele? Ficou pensativa. Percorremos o resto do caminho
Não posso ir muito além da árvore genealógica mais recente, porque não conheço mais…. Mas o que tenho é excepcional, pelo que não tenho de ir muito mais além. As recordações não vão além dos meus avós. Sobretudo o meu avô… que integridade e que linearidade! Nunca me lembro de conhecer uma pessoa mais honesta na minha vida! São numerosas as histórias que contam sobre ele! Até em Portalegre! E esta história, em particular, já é contada pela segunda geração. O meu pai saiu a ele. Foi desenhado nas mesmas linhas. Também há histórias sobre ele. Eu saio ao meu pai. Não há histórias sobre mim. Nem faço questão que haja. O que posso dizer é que não é nada fácil ser-se assim. Poucas pessoas nos compreendem ou nos aceitam como somos, uma vez que em todos os caminhos sempre há desvios. É uma rectidão muito vincada, sem desvios. As pessoas têm medo. Sinto isso, mas não ligo. Vivo o meu dia-a-dia sem me preocupar com a vida dos outros, a não ser no único sentido de ajudar, quando posso e sei. E nada mais. A seriedade é um vínculo na personalidade uma vez que os exemplos são sempre muito exigentes e estão sempre muito vivos. Depois, seguiu-se a formação religiosa ( e não só) que me foi dada pelas irmãs de S. José de Cluny, no Colégio de Santa Maria, e que eu procuro pôr em prática no meu dia-a-dia. Tudo foi determinante na minha formação. E a todos o meu reconhecimento por isso. Agora, cabe a mim falar desse tipo de formação tão determinante na vida de qualquer pessoa. Esta formação de raiz, e não só de aparência, é decisiva em qualquer pessoa. Não é só o ficar bem, é necessário criar estes valores para que possamos viver numa sociedade mais justa e mais consciente, quanto mais não seja para evitar casos como os que me têm tocado viver, estes últimos tempos, devido a essa mesma falta de formação de algumas (muitas!). Passa-se um caso com um meu ex-companheiro a quem ajudei, a determinada altura da sua vida, quando mais precisava, e que não está a cumprir com os seus deveres, até agora. Dei-lhe e dou-lhe o benefício da dúvida, mas já lhe tivesse apanhado mentiras… A minha posição em nada mudou: continuo a acreditar no que há de melhor nele. Depois, há aqueles que andam divididos por que lhes foram inculcados certos valores por um dos pais e outros pelo outro. Então, acontece isto: agem mal e ficam com problemas de consciência, porque não querem tomar uma posição dissonante, mesmo não concordando com o que se passa. Não deixam de ser boas pessoas, mas também não deixam de ser más. E são adultos sofredores. Entre a minha mãe e o meu pai há diferenças na maneira de ser, mas eu decidi-me por uma, e não me afastei dela. Não fiquei dividida, como acontece com alguns. Agora, o exemplo que eu dou aos meus filhos é aquele que me deram a mim e que eu julguei ser o mais recto. Que pena não haver mais pessoas assim! Seria tão mais fácil para todos!
Eu também fui uma criança da rua, mas na década de 70, com a agravante de ser uma miúda, o que nunca foi bem visto pelos mais conservadores. Contudo, ser criança da rua, na década de 70, numa pequena vila do interior, não é o mesmo que sê-lo, agora, e, ainda por cima, nos arredores de uma grande cidade, onde o perigo é muito maior. Hoje em dia, esta situação ainda é comum, em famílias cujos progenitores trabalham e não têm quem olhe pelos filhos, durante a sua ausência, devido às magras e suadas finanças e também devido à ausência de familiares, próximos ou distantes, capazes de o fazer.
Os meus pais trabalhavam durante o dia, o meu pai, muitas vezes, de noite, pelo que precisava de recuperar essas horas de sono perdidas, durante o dia. Esta ausência levou-me a criar um ambiente, (por vezes pesado, devido ao silêncio e ao vazio), só meu. Eu decidia como distribuía o meu tempo e o que fazia com ele. De todas as famílias que habitavam nas imediações do meu bairro, só um amigo meu de infância estava em circunstâncias semelhantes às minhas: ambos os pais trabalhavam, embora tivesse os avós maternos que olhavam por ele e pela irmã mais velha. Todas as outras crianças tinham a mãe em casa, pelo que havia sempre alguém que ia até ao portão olhar ou chamar pelo nome dos filhos. Nesse bairro, todas as pessoas eram da mesma cor, haviam sido formados na mesma cultura e professavam a mesma religião. Nada nos distinguia, para além da natureza de cada um. As casas das minhas vizinhas de infância foram uma segunda casa para mim, fazendo-me companhia nas horas vazias e, embora me distraísse em casa, havia muitos momentos em que necessitava de sentir a presença de alguém, junto de mim e, quando chegava a hora de recolher, eu regressava, muitas vezes, ao silêncio da casa vazia. Contudo, a maior parte do tempo, era passado na rua onde brincava com os rapazes ou com as moças, dependendo de quem encontrasse. O espaço imenso que rodeava as nossas casas, situadas numa zona quase limítrofe da pequena vila, onde os campos se estendiam até ao grupo de casas mais próximo, era o cenário das nossas deambulações. As ruas, onde passeávamos de bicicleta, que, muitas vezes nem alcatroadas eram, poucos carros ou pessoas desconhecidas ali passavam, suscitando sempre a nossa desconfiança, quando tal sucedia. Não tínhamos as más companhias que nos liderassem por caminhos desviantes, pelo que vivíamos num universo seguro. Fazíamos o que as crianças de hoje ainda fazem: brincadeiras e jogos de toda a espécie. Os laços afectivos que se criaram, ligam-nos ainda hoje, pelo menos a alguns de nós. São estes laços que levam muitas crianças e adolescentes a encontrar, nos outros, os alvos dos seus afectos, retribuídos ou não, e que muitas vezes substituem a família ausente ou o ambiente conflituoso do lar. Os que têm a sorte ou a facilidade em conhecer bem os amigos que os rodeiam, poderão escolher entre o que é bom ou mau para eles, os outros perdem-se em amizades duvidosas ou que adoptam na ausência de outras melhores. São estas amizades que lhes valem, pensam eles, quando têm um problema que requer solução imediata, não se dando conta que não se meteriam nas situações, se não fossem as companhias. A sorte ou o azar destas crianças consiste na capacidade de perceber a natureza daqueles a quem tratam por amigos, e nem sempre isso é fácil ou mesmo possível… uma vez que há factores que condicionam esses mesmos juízos. Eu também me enganei na opinião sobre algumas amigas… e, hoje, sei que fui e sou amiga, ao contrário delas…
Os elos mais fracos de todas as sociedades são as faixas etárias que não têm ou já perderam a força – as crianças e os idosos. Mas são aquelas, na sua inocência, as maiores vítimas de uma sociedade calculista, violenta e gananciosa que as explora ou as empurra para o buraco da miséria. Talvez o drama das crianças comece nas famílias onde nascem, que não têm condições financeiras para as sustentar, enviar à escola e, enfim, dar-lhes tudo aquilo que elas necessitam financeiramente e não só. A miséria, a olhar pelo que acontece por esse mundo fora, é, em parte, a grande responsável pela insustentável situação de muitas crianças e suas famílias. A miséria financeira, salvo raras excepções, é, em grande parte, responsável pela miséria moral e, as crianças que deveriam ser amadas e protegidas, são, muitas vezes, negligenciadas, vendidas, maltratadas… Numa sociedade onde o dinheiro é essencial à sobrevivência (longe vão os tempos em que, sem dinheiro, se sobrevivia), já que, sem dinheiro, não se faz nada, é fácil de perceber o que poderá acontecer a estas crianças. Muitas vezes, o trabalho infantil, ainda que injusto e ilegal, é um mal menor, uma vez que, e apesar de tudo, a criança/adolescente está a aprender um ofício que lhe poderá ser útil mais tarde, para além de ajudar a magra economia familiar. Depois, numa sociedade onde o trabalho, mal remunerado é o único sustento das famílias, e olhando aos horários esquisitos que por aí há, ainda falam de negligência da parte dos pais. Se não há dinheiro ou possibilidade de os deixar com alguém conhecido ou com familiares, não resta outra alternativa senão deixá-los sozinhos em casa, com todos os perigos que tal situação acarreta. Lembro-me do caso de um amigo meu, cujo único filho, e devido aos horários do casal, passava imenso tempo em casa sozinho e, como diz ele diz, “Graças a Deus, não aconteceu nada!” Mas poderia ter acontecido… e foi isso que ele quis dizer. Ele e a mulher tiveram a sorte que muitos outros pais poderão não ter tido. Mas o problema não fica por aqui, se olharmos por esse mundo fora, onde os objectivos justificam os meios e, quando o objectivo é o vil dinheiro, faz-se de tudo para o conseguir. É então que vemos pessoas sem escrúpulos (e sem trabalho) a vender e a escravizar crianças, de todas as formas e feitios, em todos os países… desenvolvidos, em vias de desenvolvimento ou mesmo do denominado terceiro mundo. Evoluímos tecnologicamente, mas o dinheiro impede que as mentalidades evoluam. Se formos buscar o exemplo da exploração sexual das crianças, todos sabemos que, cada vez mais, e com as denúncias que têm vindo à luz, que atinge até zonas remotas, onde, hipoteticamente, poderíamos encontrar uma espécie de paraíso, encontramos o mesmo inferno. Estou a pensar no último escândalo daquela ilha do Canal da Mancha, onde as escavações puseram a descoberto as provas das denúncias que só há pouco chegaram aos ouvidos certos que deram início à investigação. Olhando para este panorama mundial, poderemos e deveremos questionar-nos sobre a aplicação do “Direitos da Criança” que teimam em não sair do papel. Talvez as soluções passem não só pela criações de cartas como a dos Direitos da Criança mas por uma profunda remodelação social e económica mundial, mas primeiro temos de passar pela reforma das mentalidades. Nunca se ouviu falar tanto destes direitos e assistimos ainda a tantos atentados a eles. Todos os dias, a cada hora, há uma criança maltratada, de alguma forma. Vejamos o caso daquela menina brasileira…Para já, podemos ficar com a ideia que não se pode ajudar as crianças sem ajudar as suas famílias também… Depois, como pode um governo responsabilizar alguém quando ele próprio não consegue criar as condições ideais para acabar com grande parte dos problemas responsáveis pelo mal estar infantil? Não há soluções para este problema assim como não os há para outros, porque toda agente pensa nas soluções dentro da sociedade tal como está estruturada e não passa por aí… nem nunca passará! Há que pensar
Continuo à espera. Olho para os lados. As pessoas que, tal como eu, esperam a sua vez, parecem indiferentes ao que se passa à sua volta. Só levantam a cabeça, durante longos períodos mergulhada numa revista, para se assegurarem de que não chegara a sua vez. Algumas murmuram conversas privadas, olhando em redor, de vez em quando, como que para se certificarem de que ninguém segue as suas palavras. Alguns senhores idosos dormitam, acordando sobressaltados ao som da campainha que assinala a passagem do número que marca a vez de cada um. Eu, por meu lado, vou ouvindo música com os auriculares, olhando distraidamente para o pequeno ecrã mudo, que emite um programa matinal.
Passado algum tempo, entra um jovem moreno, alto e magro com uma resma de exemplares de um periódico debaixo do braço, bem conhecido do público em geral, e dirige-se ao fundo da sala. Passou rapidamente por mim, como se perseguisse alguém. Uns segundos mais tarde, estava ele a percorrer a primeira das cinco filas de cadeira bem alinhadas, estendendo, desajeitadamente, em movimentos soltos, o exemplar apontado ao peito das pessoas. Falava baixo e mal se ouviam as suas palavras. Ao princípio, a reacção dos presentes foi de choque, para logo crescer para a indignação. Revoltavam-se contra as circunstâncias de vida que levavam aquele rapaz, ainda em idade escolar a trocar a escola por aquela vida. O rapaz aproximou-se de uma senhora que abrira a mala e se dispunha a comprar um exemplar. Ela colocou-lhe algumas questões às quais ele respondeu ao acaso, como se se tentasse libertar de uma mão rígida que, de repente, o agarrasse com força. Falava com a certeza de que aquela conversa não lhe iria resolver os seus problemas. Ele frequentava a Escola da Amadora, entrava às 15h e sim, ele tinha tempo para tudo. A indignação da senhora subiu de tom. Recuou na sua intenção, não pactuaria com situações dessas, porque seria alimentá-las. Tive pena do moço. E, sobretudo, compreendia-o na sua atrapalhação. Ele estava a fazer um trabalho a que estaria, de alguma forma, obrigado, já que se sentia o pouco à vontade que se desprendia dos seus modos no contacto com as pessoas: ele agia como se quisesse desaparecer após o primeiro contacto com os possíveis clientes. Frustrado e desanimado, o rapaz abandonou a sala, perseguido pelas vozes indignadas que, desta vez, se manifestavam contra o governo. Passados uns minutos, entraram duas garotas, com idades compreendidas entre os oito e os catorze anos, com os exemplares daquele periódico. Não sei se estariam unidos por algum laço de parentesco ou apenas pelas circunstâncias da vida que os aproximara. A mais novinha apertava os exemplares contra o peito, com se os quisesse proteger contra as invectivas dos presentes. Atrapalhadas, e algo amedrontadas com a violência da indignação que tomava conta das pessoas, elas saíram precipitadamente. Nunca mais os vi. Penso no que sentiriam após aquela inesperada recepção, tão diferente da habitual indiferença a que estão habituados ou dos gestos distraídos das mãos que se estendem para a solidariedade. Adivinho a batida apressada do coração, a voz estrangulada e a frustração própria daqueles que são as principais vítimas da sociedade, e que não vêem solução ajustada para o seu problema. Vivemos no século XXI, com os problemas sociais dos outros séculos.
Fátima Nascimento
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