opiniões sobre tudo e sobre nada...
Quarta-feira, 3 de Junho de 2009
A vergonha da História

Lia, um dia destes, uma curiosa e interessante entrevista ao escritor espanhol Juan Manuel Prada, aquando do lançamento do seu último romance “O Sétimo Véu”. Esta seria mais uma entrevista normal, se não fossem algumas passagens interessantes que me fizeram pensar. O enredo do seu romance, segundo as suas palavras, passa-se durante a Segunda guerra Mundial, e faz uma incursão pela ocupação e consequente Resistência francesa. Uma das passagens interessantes desta entrevista tem a ver com toda a investigação realizada pelo autor sobre aquela época em que ele fala das dificuldades encontradas. Diz o autor, e passo a citar, que “…enquanto me documentava sobre a época, dei-me conta de que muitas das noções históricas que temos estavam mitificadas, falsificadas. Por exemplo, temos uma noção romantizada da Resistência francesa. E o livro converteu-se em algo mais: numa reflexão sobre o heroísmo, a memória, a identidade. Num discurso sobre a dificuldade de avaliar o passado e enfrentar a verdade. Creio que as nações europeias tenderam a mitificar ou idealizar o seu passado.” Mais à frente acrescenta que “A escritora russa judia Irene Némirovski contou, em Suite Francesa, algo sobre a verdade da França ocupada pela Alemanha: uma potência militar e cultural que, no entanto, só produz a Resistência. Este é um período obscuro da França: com a força de que dispunha, não deveria oferecer apenas resistência. Não está estudado a fundo o fenómeno do colaboracionismo em França. Isto pareceu-me muito interessante, como metáfora de como os povos tendem a não enfrentar a sua verdade.” Falando mais à frente ainda sobre a sua pesquisa refere que “Procuro sempre que tudo esteja bem documentado. Sobre o tratamento que os espanhóis receberam em França li muito e tenho testemunhos pessoais de gente que agora está a morrer. O mais difícil foi a informação francesa sobre a época de ocupação de França, de 1940 a 44. O mais surpreendente é que há muitos livros de memórias, pessoas que contam a sua experiência pessoal, mas não há um grande livro de investigação histórica profunda. É um tema tabu.” Mais à frente e respondendo à questão do jornalista sobre a possibilidade de a investigação “poder provocar um questionamento profundo”, Prada concorda acrescentando … mas é muito cómodo viver na mentira. …Criam-se histórias oficiais – no caso, a de um país que criou a Resistência – e isso é tranquilizador. Ninguém se preocupa em procurar mais.” À pergunta se essa ideia se aplica à Europa actual ele responde que “ “Sim, é uma das suas características mais profundas. Estabeleceu-se uma verdade oficial, e ninguém tem interesse em desmenti-la. Quem o faz, pode ser castigado. Qualquer nação tem episódios menos nobres, e devia assimilá-los e aprender com eles, para não os repetir. Ter um olhar abrangente e, quiçá, misericordioso. Há que ter uma certa grandeza humana. E nós vivemos numa época dominada por grandes ideologias que impõem a sua visão da realidade, e habitualmente são visões com pouca grandeza humana, muito doutrinárias e maniqueístas. Por exemplo, o dinheiro tem um poder religioso.”

  Mais do que as minhas reflexões, esta entrevista é toda ela muito importante pelas questões que deixa no ar, (e todos nós que saboreamos a História, não nos limitando a engoli-la, já demos por alguns factos que não estão explicados, isto é, cujas causas se desconhecem. Por exemplo, como é que a França, no final dos anos 30, e com o armamento já desenvolvido, ainda confiava na Linha Maginot? E nós apercebemo-nos dessa lacuna).

  Já não é a primeira vez que leio uma apreciação destas. Um índio norte-americano falava da nossa história como uma versão da mesma e não a verídica. Há muitos autores que defendem que a História não é mais do que a versão dos vencedores. Assim sendo, a História não poderá ser considerada uma ciência pela falta de rigor. Assim sendo, corremos muitos riscos… E a quem interessará esta História mutilada, mascarada? Não aos povos, não às nações… nem favorece a própria História. O que é a História? Ela não é mais do que a memória dos povos, não a memória conjunta mas a soma das memórias individuais. As memórias das suas vivências boas e más. Tudo tem de ser estudado sem excepção, não há que ter medos ou vergonhas, há que enfrentar esses momentos maus, pensar sobre eles e aprender com os mesmos. Só assim a Humanidade avança verdadeiramente! Só a verdade contribui para o engrandecimento do Homem e das Nações. E a França é uma grande nação e a Verdade só poderá contribuir para a engrandecer ainda mais. E há que engrandecer a própria História, enquanto ciência, numa era como a que vivemos em que há pessoas que afirmam, (não sei em que é que se baseiam) que certos aspectos da História não aconteceram, que são mentira. Agora, mais do que nunca, é preciso estudar tudo a fundo e trazer tudo a lume, para que, no futuro, essa Verdade não venha a ser mal utilizada ou sequer questionada. Porque, ao contrário daquilo que se pensa, poder-se-á esconder a Verdade por muito tempo, mas não para sempre. A verdade acaba sempre por triunfar e que com ela triunfe a verdade. É para isso que serve a Literatura também – para abrir caminhos que ainda não se teve coragem de encetar. Quando a França, de uma forma mais serena, puder avaliar as suas feridas e trazê-las à luz do sol, a História da Humanidade trará um grande contributo não só à História do seu País mas também à da Humanidade.

  Há algum corajoso que se queira aventurar a estudar, de forma isenta, este campo ainda mal explorado em França?

 



publicado por fatimanascimento às 21:42
link do post | comentar | favorito

mais sobre mim
Julho 2018
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3
4
5
6
7

8
9
10
11
12
13
14

15
16
17
18
19
20
21

22
23
24
25
26
27
28

29
31


posts recentes

Cidadãos de primeira e… d...

Que têm em comum Camões e...

Só anda descalço quem que...

"Bullies" /Predadores hum...

O que é a poesia?

Monarquia versus repúblic...

Meninas mulheres

sociedade e desigualdade

“Vai abrir a porta, filha...

Verdade, jornalismo e… co...

arquivos

Julho 2018

Outubro 2017

Março 2017

Fevereiro 2017

Janeiro 2017

Dezembro 2016

Agosto 2016

Dezembro 2015

Novembro 2015

Setembro 2015

Agosto 2015

Janeiro 2015

Dezembro 2014

Outubro 2014

Setembro 2014

Agosto 2014

Junho 2014

Maio 2014

Abril 2014

Janeiro 2014

Dezembro 2013

Outubro 2013

Setembro 2013

Agosto 2013

Julho 2013

Junho 2013

Maio 2013

Abril 2013

Março 2013

Fevereiro 2013

Janeiro 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Julho 2012

Junho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Março 2012

Janeiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Agosto 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Maio 2010

Abril 2010

Março 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Outubro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

Junho 2009

Maio 2009

Abril 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008

Outubro 2008

Setembro 2008

Agosto 2008

Julho 2008

Junho 2008

Maio 2008

Abril 2008

Março 2008

Fevereiro 2008

Janeiro 2008

Dezembro 2007

Novembro 2007

Outubro 2007

Setembro 2007

Agosto 2007

Julho 2007

Junho 2007

Maio 2007

Abril 2007

Março 2007

Fevereiro 2007

Janeiro 2007

Dezembro 2006

Novembro 2006

tags

todas as tags

favoritos

A manifestação de Braga

links
blogs SAPO
subscrever feeds