Há pessoas que ouvem alguém dizer algo e, por alguma razão desconhecida, fica-lhes gravada na memória esperando apenas a oportunidade certa para sair, sem alteração. Isto passa-se frequentemente pelo que se deve ter em atenção e perceber o que se passa.
A minha mãe nasceu pobre. Andou descalça na neve e, talvez por isso, não goste dela. Apesar disto, ela saiu-se com uma frase, há uns tempos atrás, que me ficou na memória, talvez para escrever sobre ela.
Um dia chegou a casa, depois de comprar uns sapatos por dez euros. Quando passei por ela, atirou-me:
- Olha, acabo de comprar uns sapatos por dez euros. – Num tom desdenhoso, dobrada sobre si mesma, descalçava-se com a dificuldade própria das pessoas idosas. – A outra é que tinha razão! Por este preço, só anda descalço quem quer.
Pensei em não dizer nada. Mas, como percebi que repetia o assunto tentando conhecer a minha reação, tive de dizer-lhe que dez euros é muito dinheiro para algumas famílias. Que para pagar dez euros por uns sapatos, (pois não podemos andar descalços, porque a sociedade não vê com bons olhos tal situação), muitas famílias tinham de retirar esse dinheiro destinado a gastos com outros aspetos da vida familiar (um pouco à semelhança do que se passa com o estado que, para tapar um buraco orçamental, abre outro).
Pensou um pouco e não levou muito tempo a concordar comigo. Vi como se retraía perante a sua mal calculada frase. Creio que aprendeu a lição e, nos tempos mais próximos, não vai repetir essa, ouvida no local que frequenta, e da boca de alguém que, aparentemente não dedica muito do seu tempo à reflexão profunda e alargada sobre os factos da vida.
O problema não está só na pessoa que a diz pela primeira vez. Está também naquelas que a repetem sem refletir sobre o que ouviram. Este é um fenómeno que não começou nem vai terminar aqui. O problema de muitas pessoas (não sei se a maioria) é ouvir e memorizar o que escuta como um dado adquirido, como um dogma. Mas é também um risco que todos corremos nalguma fase das nossas vidas. Ninguém está livre de que lhe aconteça algo assim, pelo que devemos estar atentos. Afinal, a vida não é constituída por dogmas, muito longe disso. Aqueles só existem para as pessoas pouco dadas a pensar. Talvez, por isso mesmo, esses dogmas, essas ideias adquiridas que formam a mentalidade coletiva, leve tanto tempo a mudar (cerca de 100 anos segundo as estimativas de alguns). E a adesão a estes dogmas é transversal às classes sociais, culturais… o que dá que pensar. Como é possível que pessoas, que tiveram acesso a uma educação superior, estejam agarradas a dogmas que não têm pés nem cabeça? E mais, porque é que fazem questão de dar entrevistas defendendo isso mesmo e passando uma ideia de estupidez cultural e científica? Leva a pensar que um curso superior não dá inteligência a quem não a tenha.
Bem, como já disse acima, este estado de inconsciência coletiva é um fenómeno que parece querer perpetuar-se nos tempos. Talvez isso explique porque é que a história humana é cíclica. Como costumo dizer, parece que há poucos humanos a puxar a corda para a frente e muitos a puxá-la no sentido contrário.
Uma colega minha, este ano, quando pedia aos alunos que pagassem um euro para ver uma peça de teatro, e me preguntava se já tinha o dinheiro de todos, respondi que não obrigava os alunos que não queriam, pois não era dona do dinheiro de ninguém. Respondeu-me que “sinceramente, é só um euro!”
Quando isto se passa nestes aspetos mínimos o que se passará a outros níveis por esse país fora e durante quanto tempo mais vai este fenómeno resistir? Provavelmente, enquanto houver pessoas que pagam para não pensar…
Tive há pouco a possibilidade de ver um vídeo de uma adolescente vítima de “bullying”. Acabou por suicidar-se a moça por não aguentar tanta frente de batalha pertencente à mesma guerra.
Um dia, alguém lhe pediu que mostrasse os peitos através da câmara do seu computador. Acedeu. Este ato generoso (dar algo tão íntimo, implica necessariamente um sentimento forte em relação à pessoa que o pediu) valeu-lhe uma perseguição escolar e eletrónica de grande escala. Sim, a loucura da perseguição e o desejo de sangue estendeu-se até à cidade para onde se mudou com a mãe. Aqui, começou pelo alarde eletrónico e passou à nova escola onde predadores mecanizados responderam da mesma forma predatória.
O problema, na sociedade em que vivemos, é que muitos, não sei se a maioria, se fixam no “erro” da vítima (como se todos não os tivéssemos cometido numa fase ou outra das nossas vidas sem estas horríveis consequências) e não nos predadores.
Vamos deter-nos nestes. São crianças, jovens, adultos que obedecem a instintos baixos e que se apresentam socialmente amorfos até farejarem uma possibilidade de manifestar esses seus baixos instintos. Alimentam-se de ódios, preconceitos… nos quais se baseiam para sitiar as suas vítimas. São um pouco o que se passava, há alguns anos atrás, nas sociedades ditatoriais regidas por regras inumanas e sem razão de existir, onde as pessoas viviam dominadas pelo medo o que, parece incrível, mas parece ser um outro sentimento de que se alimentam esses “seres humanos”.
Se compreendermos a inteligência como sendo lata, simultaneamente profunda e aberta. Se a compreendermos como uma forma de pensar felizmente casada com os bons sentimentos. Se a compreendermos como a forma de pensar no que é simultaneamente bom para mim e para o outro, então poderemos referir-nos a estes predadores como seres dotados de uma esperteza aguda, mas de uma inteligência limitada ou mesmo inexistente.
Não tentem comparar estes predadores humanos à selva povoada de verdadeiros animais porque não se assemelha em nada à criada por alguns humanos, no que respeita aos “requintes de malvadez”, ou, se quiserem, à tortura. (Porque bullying é uma forma de tortura.) Não, aqueles ainda não chegaram a tanto. Talvez porque lhes falta a inteligência convertida ao mal. Eles matam por razões mais nobres que os humanos – a sobrevivência. Os humanos perseguem, torturam, matam com uma indiferença e/ou um ódio alheios, creio eu, à selva natural – a verdadeira selva. Aliás, o homem parece-me ser o único animal que persegue, tortura e mata seres da mesma espécie…
Isto faz-nos pensar na saúde mental dos predadores. Faz-nos pensar no desequilíbrio mental que supõe este tipo de reação. Como explicar o gosto pelo sofrimento alheio, o gosto por exercer o “poder” sobre o seu semelhante, o gosto pelo sangue alheio, o gosto em tirar vidas? Mas para todo o desequilíbrio há um tratamento, nem que seja apenas um acompanhamento psicológico atento. O que não se pode é deixar generalizar esta situação que não tem nada de normal (natural) ou equilibrado nela.
Aquela rapariguinha, tão nova ainda, sucumbiu a uma situação que a ultrapassou sem provavelmente ter percebido que a culpa não era sua mas de indivíduos desequilibrados que se alimentaram, durante o tempo que durou a sua vida, depois do tão apontado “erro”, do seu medo, do seu sofrimento e depois, talvez, até da sua morte por suicídio, a que eles mesmos também a incitaram. Estes, senhores, são dignos de um estudo aprofundado, a todos os níveis.
Quer acreditem quer não, isto não é uma situação normal. Por isso, não, não vou usar a palavra “bully” ou “bullies”. São predadores humanos.
Se se quiserem integrar na categoria de “seres humanos”, vivam como tal, e não disfarcem apenas o que verdadeiramente são. Tudo é produto de uma reflexão sempre ligada ao sentimento. Os que já “sofrem desse mal”, façam uma introspeção e percebam o que têm de fazer para se recuperarem, porque há solução para tudo. Apenas tem que se desejar a mudança e ela acontece. Até lá, até essa desejada mudança, não passam de “predadores humanos amorfos”, bombas construídas e capazes de explodir a qualquer momento.
Projecto Alexandra Solnado
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