O meu pai costumava contar uma história que dava que pensar. Contava que um trabalhador andava à procura de trabalho. Como era bom trabalhador, não tinha dificuldade em obter a confiança dos patrões. Um dia, à hora do almoço, recebeu uma taça de sopa muito quente. Como era esperto, e procurando uma resposta à sua questão de forma a que ela revelasse o caráter do patrão, queixou-se da sopa que estava quente! A resposta seca não se fez esperar, que soprasse o líquido! Bastante introvertido, pensou para ela, não, este patrão não me convém. Passado um dia, foi bater a outra porta. Rapidamente esta se abriu para o acolher. À hora da refeição, na pausa do trabalho, ele voltou a queixar-se da temperatura da taça da sopa. A resposta também não se fez esperar. “Sopra!” Desanimado, deixou aquela casa, nesse mesmo dia com o intuito de encontrar um outro emprego. Uma terceira porta se abriu, e ele foi recebido por um senhor que lhe perguntou se comera. Ao ouvir a resposta afirmativa, ele dispôs-se a trabalhar. Ao almoço, ele recebeu a tradicional taça de sopa. Voltou a queixar-se e a resposta, desta vez, surpreendeu-o: “Bota migas na sopa!” O trabalhador sorriu. Encontrara o patrão ideal para ele.
O meu pai, à semelhança do que acontecia com muitos dos seus conterrâneos, quando as circunstâncias financeiras ainda pioravam mais, ele foi obrigado a abandonar a escola para ir trabalhar. Na altura, nem a idade nem as localidades pequenas podiam dar-lhe o patrão que tanto desejaria. Era um homem mau. Tratava-o mal fisicamente e a comida era racionada. Segundo ele, enquanto a mulher permaneceu em casa, a pouca comida nunca lhe falhara. Quando esta abandonou o marido, tudo piorou para aquela criança magra e ansiosa. Trabalhava de sol a sol e a comida, quando a havia, era um pedaço de pão seco e um pouco de água. Para cúmulo, quando o tempo não permitia, ele ficava fechado no curral, junto aos animais. Longe da luz e da comida saudável, ele começou a definhar. “Quando as portas se abriram, fechou os olhos à claridade que o ofuscava. Saiu para o campo com os animais e, no caminho, e por pura casualidade, cruzou-se com caras conhecidas. Afinal, as pequenas aldeias estavam muito juntas geograficamente e as populações conheciam-se bastante bem. Foram estas caras sorridentes que alertaram o meu avô para os maus tratos de que era alvo. Assim que pode, o homem subiu o carreiro inundado de um sol divertido e quente e bateu à porta do homem estranho, reclamando o filho. O homem, admirado, não disse nada, assim que o meu avô lhe explicou ao que ia. Pegou na mão do filho e, voltando-se para aquele monstro humano, não se conteve e, antes de rodar os calcanhares, disse-lhe que lhe confiara i filo para trabalhar, não para o mal tratar e exigiu ali mesmo o pagamento.
Esta história serve bem os tempos que vivemos atualmente e os de tantos outros que não tiveram a sorte de nascerem ricos ou mesmo remediados. Tratando-se de crianças ou adultos, a verdade é que a sorte em encontrar um patrão cumpridor é a riqueza de cada empregado/trabalhador. Aquela narrativa mostra isso mesmo! Assim houvesse possibilidade de escolha e o problema de muitas pessoas terminaria. Todos sabemos que os patrões, antes de o serem são pessoas com defeitos e qualidades que são sempre aguçadas pela educação. Mesmo em tempos de crise, é necessário perceber com quem lidamos.
Não é estranho que as pessoas se revoltem contra as pessoas roubadas apodando-as de ingénuas, estúpidas ou outro nome qualquer pejorativo? Já me aconteceu várias vezes. Em variadas conversas, muitas pessoas acabam sempre por culpar as pessoas roubadas, enganadas… pelos erros cometidos por outras. E são pessoas de todos os extractos sociais, culturais… parece ser quase uma regra!
Conheço uma moça bem formada cuja mãe passa o tempo a encontrar-lhe defeitos. Ora, sabemos que pais mal-formados acabam sempre por criar filhos iniciados nos exemplos dados. (Já me aconteceu, enquanto professora, perceber que os filhos são o espelho dos pais e vice-versa, salvas sempre a supostas excepções.) Ora, estes que provocam situações incómodas, seja qual for a sua natureza, nas vidas de outros, são geralmente vistos como eventualmente perigosos mas quase sempre espertos e os outros, da mesma formação, acabam invariavelmente por invejá-los. Sobretudo quando escapam de julgamentos sociais e judiciais depois do mal feito. E sabemos que quem prega qualquer tipo de vigarice, conhece as leis com que se cose ou melhor conhece os interstícios da lei que lhes permite fugir ao castigo merecido. E quando o fazem, infelizmente, conseguem, de alguma forma, a colaboração da boa-fé das pessoas vigarizadas. Afinal, quem mal não tem, mal não pensa. Isto não significa que sejam menos espertas que os outros. O que acontece frequentemente, é falta de avaliação rigorosa dos vigaristas porque estes são, geralmente, manipuladores exímios. Tentam conhecer as pessoas não para as ajudarem mas para as controlarem. Todos sabemos que isto está errado, é errado. Toda a gente sabe que estas acções são condenáveis. O que não se entende é a lógica distorcida que parece afectar grande parte da nossa sociedade aquando do julgamento moral das diversas situações de vigarice. E sempre que alguém leva a melhor sobre outra, no sentido de a prejudicar, não é esperteza e muito menos inteligência, é maldade. Então porque é a que a nossa sociedade continua a condenar as vítimas em vez dos prevaricadores levando inclusive aquelas a sentirem-se diminuídas e a esconder as falcatruas? É esta lógica distorcida! E não deve ser assim. Os ladrões têm de ser julgados e metidos na prisão e não os roubados! Onde está a moral? Onde estão os valores que alicerçaram a nossa sociedade e que, ainda assim, teve sempre quem a esquartejasse? Agora, estamos a viver um ambiente social onde o roubo é quase uma constante e que mais não é do que uma versão da exploração do homem pelo seu semelhante! É isto que está errado! É o roubo que tem de ser condenado e não as pessoas roubadas! Daqui a nada estamos a chamar branco ao azul e azul ou branco… Desculpem, isto já acontece. Então o que se deve fazer? Ter a coragem de defender que merece defesa e condenar publicamente quem prevaricou. Ou vamos cobardemente pactuar com a mudança que se está a operar violentamente na nossa sociedade, calando-nos ou concordando com exteriormente com essas pessoas mal-intencionadas? Há que falar sem medos! Não nos vão odiar mais do que já acontece se manifestarmos a nossa opinião! Se calhar desprezam-nos mais pela cobardia demonstrada!
Agora, depende da leitura de cada um e cada um faz a leitura de acordo com a sua maneira de ser. Mas uma coisa julgo que ficou clara: o roubo, tenha ele a forma que tiver, é um acto condenável, desprezível e cobarde!
Uma tarde, o meu pai chegou a casa e disse que um senhor o tinha convidado para visitar a sua quinta. Nós iríamos também. A minha mãe, que arrumava a cozinha, franziu o cenho. Não lhe agradava ideia. O meu pai insistiu. O homem precisava de ajuda! Um amigo do meu pai falara ao senhor do grande espírito da filha. Apresentara o problema ao meu pai. Este, sempre pronto a ajudar, aceitara. Talvez pudessem perceber o que se passava com o animal. Lá fomos.
O céu primaveril mostrava um céu tingido de nuvens. A quinta ficava na ponta norte da vila, não muito longe do prédio onde vivíamos. O acesso era íngreme e entrámos num portão largo. De um lado, a casa e, a alguns metros da mesma, a cavalariça.
Depois de uma visita rápida pela quinta, os nossos passos desviaram-se para o alvo da nossa visita – a cavalariça. Era um edifício moderno, espaçoso e arejado. Os fardos de palha encostados à parede precediam as baias onde os cavalos dormitavam na penumbra. O corredor abria-se à nossa frente. Do lado direito, dois animais mansos tiravam partido da calma da tarde. Mais à frente, do lado oposto um cavalo solitário. Aproximámo-nos. O cavalo soltou um relincho nervoso enquanto os olhos poisados em mim, pareciam querer solar-se das órbitas. Os adultos calaram-se tentando perceber o eu se passava. O nervosismo do animal acentuava-se. Os olhos pareciam colados à coroa da minha cabeça. O meu pai, frustrado, não conseguia perceber o problema que enlouquecia o animal. O homem concordou aparentemente rendido também. Continuaram a conversar ignorando os relinchos enfurecidos do animal. Foi então que percebi, pela minha visão lateral, que o homem se concentrava na minha pessoa. A minha mãe, incomodada com o ruído ensurdecedor do animal, caminhava para a saída. Eu não me conseguia mexer. Uma força invisível imobilizava-me. O terror ameaçava tomar conta de mim. A voz do animal parecia forçar a sua entrada no meu corpo. Algo em mim se debatia tanto quanto aquele animal. Era como se uma força saísse do animal e tentasse entrar em mim! Um duelo estranho e desigual. O olhar do homem colava-se intensamente também em mim enquanto o meu pai conversava distraidamente com ele. Finalmente, o homem descontraiu o corpo num gesto de desistência. Encaminhámo-nos rapidamente para o exterior. A minha mãe passeava meditativa. O homem despediu-nos rapidamente. Tinha um compromisso. Reencontrámos, sozinhos, o portão. O pequeno Mini esperava-nos.
De regresso a casa, os meus pais conversavam enquanto viam o filme espiritual da visita à quinta. A minha mãe não gostara da visita. Até que perceberam algo de estranho na atitude do homem. Ele percebera o que se passava com o animal! Mais! Ele tentara passar a energia incómoda, que perturbava o animal, para mim! Os meus pais entreolharam-se, horrorizados! Eu bem que não queria ir, dizia a minha mãe, algo me dizia que não era boa ideia! O meu pai ainda não se recompusera da descoberta feita.
Olha o que aconteceria à miúda, volveu ele, com uma perplexidade horrorizada.
Anos mais tarde, o meu pai contou, na minha presença, a um grande amigo seu que, ao ver o filme espiritual, corroborou as suspeitas dos meus pais. Calaram-se, aterrados com a audácia do homem para a realização do mal. Optara por prejudicar uma criança para salvar o animal, símbolo da sua vaidade.
Regresso à minha infância. Tempo indeciso. Local preciso. Cenário estranho. Personagens duvidosas.
Brincadeira em casa de uma vizinha. Normalidade aparente. Duas cabeças debruçadas sobre uma precária construção de lego. Poucas peças. Os minúsculos bonecos de plástico. O interesse. A alegria. A personagem vivida na boneca.
Súbita interrupção. Um homem ansioso. Perdido. Alucinado. Feroz. Sinal gestual para a filha. O acordo tácito. Altura de ir! Vens! E trá-la! A minha confusão. A miúda acompanha o pai. Olhar saudoso lançado às bonecas. Recusa íntima. Aviso? A continuação da narrativa imaginária. A minha boneca. O meu eu plástico. O movimento da boneca no cenário infantil escondida entre o polegar e o indicador. O fio da narrativa tecendo novos meandros. Nova interrupção. Vozes adultas alteradas. Presença da miúda mesmo necessária? A minha presença exigida pelo homem. A miúda tem de estar aqui. Sim! A impaciência da mulher. A voz masculina alterada pelo medo. Insistência. O meu nome suspenso do ar agitado. O meu afastamento relutante. O abandono saudoso da brincadeira. O corredor obscuro. A agitação no hall de entrada. Paragem à entrada. O meu atrevimento morre à entrada. Cenário macabro. Estupefacção. Porta estranhamente decorada. Réstias de cebolas. Réstias de alhos. Ferraduras suspensas de fitas e descuidadamente pintadas de cinzento. As incorrecções geradas pelo uso deficiente da improvisada maquilhagem. O nervosismo masculino. A aflição na fronteira da loucura. A presença da filha e da mulher à esquerda. O contágio do nervosismo. A dança do homem no espaço vazio. Não se mexam. Redistribuição do espaço. A miúda empedernida. Só a mente funciona. Os sentidos alertados. A bandeira vermelha erguida. A insegurança. A incompreensão. A minha estátua. O avantajado traseiro esticado na minha direcção. Os olhos colados à abertura do correio. A pala perpendicular ao ângulo da porta. O sol inundando a rua empoeirada com os dentes brancos salientes. A vontade de encontrar aquele sol. O arrefecimento do espírito. O tremor da voz masculina. Está achegar! Está a chegar! Para a mulher e a filha. Estão a sentir? Negação da cabeça. Os olhos fixos no filme ausente. Admiração. Não? Eu sinto. Nervosismo acentuado. Como é que vocês não sentem? As duas vozes femininas. Eu não sinto nada. A minha confusão. Incompreensão. A minha figura aprisionada. A mente aguçada pelo instinto. Que se passava? Estariam à espera de alguém? Um homem? Seria mau? Porque teria de estar ali? Acordo dos pensamentos. Novamente a voz masculina. Está rua! Agora já devem sentir! O aceno afirmativo das duas colaboradoras. A voz da mais velha. Agora já sinto! Corroboração da mais nova. A minha mente aprisionada no corpo sem vontade. A minha incompreensão. A minha aflição. O desejo do refúgio do lar vazio. A impossibilidade de me mexer. O terror vomitado do homem. Os cruéis lábios finos tensos de medo. O rosto despido dos imprescindíveis óculos. As faces lívidas. A observação cautelosa da superfície do meu crânio com a mesma mal disfarçado ódio. Regresso à posição vigilante. A pala da abertura do correio baixa como uma cortina. A coragem escondida nos bolsos das calças imensas. O proeminente estômago ameaçando a carpete da entrada. Levantamento arriscado do pesado corpo. Sinal com a mão. Os outros dois seres atentos. Quatro estátuas suspensas nas malhas do tempo. O meu desconcerto. Incompreensão. Impaciência. Um teatro macabro fraco enredo. Desconhecimento do meu papel naquele cenário. Subitamente. O movimento das estátuas humanas. O alívio. O sussurro. Já passou! As mãos agitadas como vassouras. O triunfador sorriso sereno para a esposa e a gaiata. Uma frase corre aos meus ouvidos. A calvície reluzia. Eu disse que conseguia! A miúda sem se conseguir mexer. O alerta da mulher. Esquecera a minha estátua. Já podia ir. Sem necessidade de me prender. A corrida para casa. As queixas. A indiferença da minha mãe. Omissão da situação ao meu pai. Polícia. O medo das possíveis zangas. Revelação ao meu pai. Cólera justa. Decisão. Caminho para a casa do vizinho. Passo determinado. A segurança da atitude. Recebido à porta. Responsabilização do adulto. Tentativas de explicação infrutíferas. Não é a sua filha! Queria ver se fosse! Palavras atiradas à cara do prevaricador. A ameaça. As largas costas vencidas pelo medo.
Dias mais tarde. Em casa. Palavras da mulher. Avisei-te. Resposta. Pensei que a mulher o segurava. Consegue sempre! Ainda a mulher. Mas isto foi muito grave. A voz do marido. Espero que isto não se espalhe. A mesma voz de suporte afectivo. Ninguém fala disto! Insistência do meu carrasco espiritual. Mas os colegas. Os familiares. Narrativa dos acontecimentos ao meu tio. O irmão mais velho do meu pai. Aos meus avós. A mesma revolta. Apoio ao meu pai. Condenação da minha mãe. Condenação dos vizinhos. Apoio familiar ao meu pai. Sensação de segurança retomada. A justiça feita. O pai. O defensor da sua filha. O meu justiceiro.
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