Em todas as famílias chega o momento das partilhas. É sempre uma altura em que reina a tensão entre os membros da mesma. Chegou a última à minha família materna, há uns anos atrás. O meu avô morreu há muitos anos e não me lembro de ter havido problemas com a herança gerada com a sua morte. O mesmo não aconteceu aquando da morte da minha avó, muitos anos depois. A família dividiu-se. O último problema foi o ouro da minha avó. Não era muito. Afinal, a família há três gerações que perdeu a riqueza constituída, sobretudo, por terras, que lhe pertencia. Voltando ao ouro. Ao que parece, ela deixou alguns fios e não sei que mais… Esses fios foram divididos em segmentos menores e deles se fizeram, ao que parece, pulseiras. O que não é muito não dá para todos… pelo menos quando a família é numerosa para tão pouca. O tio que cuidou da minha avó (e muito bem) perguntou à minha mãe se queria alguma coisa. Ela tinha deixado “umas coisitas”. A minha progenitora declinou. Algumas filhas e netas ficaram zangadas, afinal, tratava-se de uma recordação da mãe/avó. Hoje, e passados dois dias da morte do meu pai, a minha mãe e eu tratámos dos assuntos relacionados com a dolorosa situação e relembrámos esta situação deixando claro o que sentíamos e pensávamos acerca do assunto, se fôssemos, alguma vez, confrontadas com esta situação, isto é, se nos víssemos “obrigadas” a justificar a nossa posição. Primeiro, não me lembro de ver, alguma vez, a minha avó com ouro pendurado ao pescoço. Depois, não preciso de ter recordações físicas para me lembrar dela, basta-nos a memória das emoções e situações vividas em conjunto. Por isso, posso bem desistir dos bens materiais. Espero, sinceramente, que este tipo problemas fique por aqui… Não gosto mais da minha avó do que o resto da família e assumo que o resto da família não goste mais dela do que eu. Não há medida para o sentimento. Ou existe ou não existe. Sei que gosto da família e percebo que a maior riqueza que os meus avós deixaram aos filhos foram os irmãos. Será que eles compreendem isso ou a ganância e a má vontade falarão mais alto? Só espero que os meus avós, lá do céu, possam sentir orgulho nas pessoas da sua família…
No M~es passado, algum tempo antes do Natal, acudi, na companhia da minha filha mais nova, a um hipermercado para nos abastecermos dos produtos alimentares normais. O hipermercado estava anormalmente cheio de pessoas e crianças deslizando pelos corredores em busca da realização do sonho natalício. Aumentando fluxo de pessoas, a estes espaços, diminui o espaço para a movimentação individual e aumenta o ruído e o tempo de espera para o acesso aos serviços do talho, peixaria, caixa registadora e, no fim, e como não poderia deixar de ser, temos de enfrentar a fila para o embrulho de prendas. É precisamente nesta época, e olhando ao elevado número de pessoas, que ocorrem as situações mais rocambolescas como esta a que assisti. Estava uma fila considerável para este último serviço, quando uma senhora idosa, que tinha tirado a sua senha de vez, olhou para o quadro e viu o seu número nele inscrito. Avançou prontamente, quando se viu confrontada com a evidência de que o número estava enganado: a empregada enganara-se a marcar e passara um número à frente, que era o seu. Uma senhora jovem, dando conta do erro, avançou prontamente com uma enorme caixa presa nos braços. Não tendo dado conta do erro, a idosa protestou mas foi imediatamente afastada por aquilo a que se assemelhava a uma rajada de palavras pronunciadas de forma impaciente e violenta. A frágil velhota regressou à fila explicando o seu erro. O que mais me fez impressão não foi o erro em si. Todos erramos e todos fazemos confusões. O que mais me chocou foi a violência com que a jovem senhora se dirigiu à velhota. Com razão ou não, a violência, ainda que seja só oral, não deixa de ser violência e indispõe quem está à volta e assiste a estas cenas escusadas. E, depois, numa época que apela em tudo para o amor e a boa vontade, não deixa de ser ainda pior. Acho que é uma boa altura para domarmos o nosso lado negro deixando-o dar lugar a outros sentimentos mais límpidos, quanto mais não seja para destoarmos da forma como agimos e sentimos durante o resto do ano. Se não fizermos este exercício agora, quando o faremos?
Felizmente, a minha filha estava afastada, tentando embrulhar a sua prenda com o jeito próprio dos seus oito anos. Um casal assistia divertido às tentativas falhadas mas determinadas da criança e, a dada altura, vejo-os a servirem de ajudantes colocando-lhe a tesoura a jeito e cortando-lhe a fita enrolando-a nuns caracóis engraçados. A miúda regressou com os olhos brilhantes e muito orgulhosa do seu embrulho. Reforcei o agradecimento da minha pequenita. Não há palavras capazes de reconhecer a simpatia das pessoas que, não estando obrigadas a nada, se interessam pelas outras ajudando-as. Naquele momento, e no gesto do casal, e ainda que breves instantes, existiu ali o espírito natalício que contrastava com o reboliço criado pelas outras duas senhoras.
Quantas vezes já nos sentimos estranhos na nossa terra e “em casa” fora dela? Quantas vezes já sucedeu o contrário? Parece não haver regras para nada. Pelo menos, quando pensamos na vida! Há sítios onde somos bem recebidos e outros há em que parece que só a nossa presença já incomoda. O que pensar destas ocasiões, quando sabemos que não fizemos e não fazemos nem faremos mal a ninguém, que só queremos viver em paz a nossa vida sem qualquer outra pretensão? O que faz com que certas pessoas nos prejudiquem, quando nunca lhes fizemos mal algum? O que será? Se o conjunto dos nossos actos não praticamos mal algum que possa, directa ou indirectamente, prejudicar alguém, por que é tão difícil a convivência com aqueles que são diferentes de nós? Por que é tão difícil essa convivência da parte deles? Por que têm de nos derrubar, pelo menos, de vez em quando? O que temos nós que tantos incomoda? Ou será que só aquilo que somos os incomoda? O que fazer nestas alturas? Como reagir com certas pessoas para que nos deixem viver a nossa vida sem nela criarem problemas? Vamos deixar de ser aquilo que somos e imitá-los só para que se sintam satisfeitos e não tenham a ideia de que somos melhores do que eles e se sintam incomodados com isso? Por que nos fazem sentir mal só pelo facto de sermos diferentes? O que os incomoda tanto a ponto de nos fazerem sentir parte de uma outra equipa que não a deles, quando não é isso que procuramos ou queremos? Por que nos fazem sentir como uma minoria, ou mesmo seres abjectos, quando sabemos que há mais pessoas como nós? Por outro lado, o que faz com que outras pessoas nos recebam de braços abertos, sempre que aparecemos e se sentem “em casa” connosco? Por que é que estas pessoas não se incomodam com o que somos e convivem bem com esse aspecto sentindo-se até gratas por nos terem como amigos e/ou conhecidos? Por que se unem a nós fazendo-nos sentir parte de um todo, de uma família, onde todos têm o seu lugar por excelência sem degraus capazes de demarcar seja que diferença for entre eles? Por que é que, com certas pessoas, a vida é sempre uma festa ao passo que, com outras, a vida está sempre cheia de lodo onde nos podemos enterrar a qualquer momento? Qual a diferença básica e essencial que existe entre uns e os outros e que faz toda a diferença? O que faz com que uns, e usando a linguagem física pareçam objectos de sinais positivos e outros de sinais negativos incapazes de se atraírem? O que faz com que os seres humanos, também eles matéria, não obedeçam às leis físicas da natureza e se comportem como água e azeite incapazes de se misturarem? O que se passa connosco, os seres humanos? Onde reside essa diferença?
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